Pareceu a queda do muro de Berlim. Não ‘pareceu', apenas. Por um momento, o cruzamento em Rafah foi o Portão de Brandenburgo. É impossível não se emocionar quando a multidão de oprimidos e famintos rompe um muro que os impede de avançar, olhos brilhantes, todos a abraçar-se -, emocionar-se muito, mesmo que se saiba que foi o nosso governo, o governo de Israel, que construiu aquele muro.
A Faixa de Gaza é a maior prisão da Terra. Abrir uma passagem no muro, em Rafah, foi um acto de libertação. Provou-se que políticas desumanas são sempre políticas de estupidez: nenhum poder conseguirá jamais conter uma multidão que já tenha cruzado a fronteira do desespero absoluto.
Esta é a lição de Gaza, Janeiro, 2008.
CABERIA AQUI a frase famosa do estadista francês, do tempo de Napoleão I, Boulay de la Meurthe[1][1], com pequena adaptação: "É pior que crime de guerra: é uma estupidez!"
Há vários meses, os dois Ehuds - Barak e Olmert - impuseram um bloqueio à Faixa de Gaza e vangloriaram-se muito. Depois, foram apertando o nó mortal cada vez mais, até que já praticamente nada entrava na Faixa. Na semana passada tornaram absoluto o bloqueio - nem comida, nem remédios. As coisas chegaram ao paroxismo quando suspenderam também o fornecimento de combustíveis. Grandes áreas de Gaza ficaram sem electricidade - para as incubadoras para bebés prematuros, para máquinas de diálise, para bombas de água e para evacuar esgotos. Centenas de milhares de pessoas ficaram sem aquecimento, sob frio intenso, sem poder cozinhar, sem ter o que comer.
Vezes sem conta a Rede Al Jazeera levou aquelas imagens a milhões de lares em todo o mundo árabe. Muitas outras redes de televisão exibiram as mesmas imagens. De Casablanca a Amã, explodiram protestos de massa nas ruas que assustaram os regimes árabes autoritários. Hosny Mubarak telefonou em pânico para Ehud Barak. Na mesma noite, Barak foi obrigado a suspender, pelo menos temporariamente, o bloqueio que, desde a manhã, impedia a entrega de combustível na Faixa. Excepto por isto, o bloqueio continuou total.
Difícil imaginar ato político mais estúpido.
A RAZÃO apresentada para matar de fome e frio 1,5 milhão de seres humanos confinados num território de 365 km2 é o continuado bombardeio de foguetes Qassam sobre a cidade de Sderot e arredores.
É razão cuidadosamente pensada para unir o que há de mais primitivo e o que há de mais pobre na opinião pública em Israel. Faz calar as críticas que viriam da ONU e de governos em todo o mundo que, de outro modo, protestariam contra uma punição colectivamente aplicada a populações civis que, sem dúvida alguma, configura crime de guerra nos termos da lei internacional.
Apresenta-se ao mundo um quadro simplificado: o regime de terror do Hamas lança mísseis contra inocentes civis israelitas. Nenhum governo pode tolerar que os seus cidadãos sejam bombardeados dentro das suas fronteiras. O exército de Israel não tem resposta militar para enfrentar os foguetes Qassam. Portanto, não lhe resta outra saída senão pressionar a população de Gaza, na esperança de que se levante contra o Hamas e faça parar o bombardeio de Qassams.
No dia em que Gaza ficou totalmente sem electricidade, os correspondentes militares israelitas festejaram: só dois foguetes Qassams foram disparados de dentro da Faixa. Então o bloqueio funciona! Ehud Barak é um génio!
No dia seguinte, com 17 Qassams lançados contra Israel, a alegria desapareceu. Políticos e generais israelitas estavam (literalmente) frenéticos, fora de si: um político propôs "acções mais loucas que as deles"; outro propôs "bombardear a área urbana de Gaza indiscriminadamente, a cada Qassam disparado", um famoso professor (conhecido por ser ligeiramente perturbado) propôs que se adoptasse "o mal absoluto".
O modo de actuar do governo israelita é hoje uma repetição do que já fizeram na Segunda Guerra do Líbano (espera-se para os próximos dias a publicação do relatório sobre aqueles dias). Daquela vez: o Hezbollah capturou dois soldados israelitas, em território de Israel. Hoje: o Hamas bombardeia casas e cidades em território de Israel. Daquela vez: precipitadamente, o governo decidiu entrar em guerra. Hoje: precipitadamente, o governo decidiu impor bloqueio total. Daquela vez: o governo ordenou bombardeio massiço contra civis, para pressionar o Hezbollah. Hoje: o governo ordena o massacre, pela fome e pelo frio, de população civil, para pressionar o Hamas.
Os resultados são os mesmos, nos dois casos. Daquela vez: a população não se levantou contra o Hezbollah; aconteceu exactamente o contrário: pessoas de todos os credos e grupos religiosos reuniram-se numa mesma organização xiita. Hassan Nasrallah tornou-se herói de todo o mundo árabe. E hoje: a população cada vez mais unida num Hamas cada vez mais forte, acusa Mahmud Abbas de colaborar com o inimigo. Uma mãe que não tenha comida para dar aos filhos não maldiz Ismail Haniyeh. Maldiz Olmert, Abbas e Mubarak.
ENTÃO, o que fazer? Afinal de contas, não se pode tolerar o sofrimento dos habitantes de Sderot, que vivem sob fogo constante.
O que todos ocultam da opinião pública é que é possível fazer parar o bombardeio de Qassams amanhã de manhã.
Há vários meses, o Hamas propôs um cessar-fogo. Esta semana, eles repetiram a mesma proposta.
Para o Hamas, cessar-fogo significa: os palestinianos cessam o fogo de Qassams e morteiros; e o exército de Israel cessa as incursões em Gaza, os assassinatos por armas ‘inteligentes' em alvos ‘seleccionados' e o bloqueio.
Por que o governo israelita não aceita imediatamente esta proposta?
É simples: para aceitar esta proposta, o governo de Israel tem de falar com o Hamas, directa ou indirectamente. Isto, precisamente, é o que o governo de Israel se recusa a fazer.
Por quê? Outra vez, é muito simples: porque Sderot é apenas um pretexto - como também os dois soldados capturados foram apenas um pretexto - para coisa muito diferente. O objectivo geral de toda a ‘operação' é derrubar o regime do Hamas em Gaza e evitar que o Hamas tome toda a Cisjordânia.
Em palavras simples e claras: o governo de Israel está a sacrificar toda a população de Sderot, em nome de uma ideia condenada de antemão ao fracasso. O governo de Israel está muito mais interessado em pressionar o Hamas - que é, hoje, a cabeça de ponte de toda a resistência palestiniana - do que em proteger os habitantes de Sderot. E todos os média colaboram para difundir a farsa.
JÁ SE DISSE que é muito perigoso escrever sátiras em Israel - porque muitas vezes a sátira torna-se realidade. Alguns leitores talvez lembrem de um artigo satírico que escrevi há alguns meses. Lá, descrevi a situação em Gaza como uma experiência científica para descobrir até que ponto conseguiríamos chegar, em matéria de matar de fome populações civis e fazer da vida humana um inferno... antes de termos de levantar as mãos e nos render, derrotados.
Esta semana, a sátira virou política oficial do Estado de Israel. Comentaristas respeitados declararam explicitamente que Ehud Barak e os chefes militares estão a trabalhar na linha de "tentativa e erro" e mudam diariamente os seus métodos conforme os resultados. Param de fornecer combustível a Gaza, vêem o que acontece e desfazem tudo quando a reacção internacional é negativa demais. Suspendem o fornecimento de remédios, vêem o que acontece, etc. etc. O objectivo científico justifica os meios.
O homem encarregado deste experimento é o Ministro da Defesa, Ehud Barak, homem de muitas ideias e poucos escrúpulos, homem cujo modo de raciocinar é basicamente pré-humano. Ehud Barak é hoje, provavelmente, o ser mais perigoso que há em Israel, mais perigoso que Ehud Olmert e Benjamin Netanyahu, perigoso até para a sobrevivência de Israel no longo prazo.
O homem encarregado de executar a experiência é o comandante em chefe do Exército de Israel. Esta semana, ouvimos os discursos de dois de seus predecessores no cargo, os generais Moshe Ya'alon e Shaul Mofaz, num fórum que teve as mais altas pretensões intelectuais. Descobriu-se ali que ambos têm ideias que os colocam nalgum ponto entre a extrema-direita e a ultra-direita. São, os dois, homens de cabeça assustadoramente primitiva. Desnecessário desperdiçar sequer uma palavra sobre as qualidades morais e intelectuais do sucessor imediato de ambos, Dan Halutz. Se estas são as vozes dos três últimos comandantes do Exército de Israel, o que dizer do actual, que não pode falar abertamente como os outros? Que maçã cairia muito longe da mesma árvore?
Até há três dias, os generais ainda podiam defender a opinião de que a experiência estaria a dar certo. A miséria atingira o clímax na Faixa de Gaza. Centenas de milhares de seres humanos enfrentavam a fome total. O chefe da Agência de Apoio Humanitário da ONU para a Palestina (UNRWA) denunciou o risco de catástrofe humana absoluta. Só os mais ricos ainda tinham combustível para os seus carros, para aquecer as residências e para cozinhar. O mundo não parou de girar e ouviu-se apenas um murmúrio planetário. Os líderes dos Estados árabes enunciaram frases ocas e não moveram um dedo.
Barak, que tem talentos matemáticos, podia até calcular o dia em que a população finalmente entraria em colapso.
E ENTÃO, de repente, aconteceu algo que nenhum deles previu, embora fosse o evento mais facilmente previsível do planeta.
Quando alguém põe 1,5 milhão de seres humanos numa panela de pressão e não pára de pôr fogo no palheiro, é certo que tudo explodirá. Foi o que aconteceu na fronteira entre Gaza e o Egipto.
Primeiro, foi uma explosão pequena. Uma multidão juntou-se no posto de fronteira e os policiais egípcios abriram fogo. Houve dúzias de feridos. Foi um sinal de alerta.
No dia seguinte veio o grande assalto. Combatentes palestinianos furaram o muro em vários pontos. Centenas de milhares de palestinianos entraram em território egípcio e respiraram fundo. Estava rompido o bloqueio.
Já antes disto, a posição de Mubarak era insustentável. Centenas de milhões de árabes, mil milhões de muçulmanos viram que o exército de Israel fechava apenas três pontos da fronteira de Gaza: pelo norte, pelo leste e pelo mar. O quarto ponto do bloqueio estava entregue ao exército egípcio.
O presidente do Egipto, que se apresenta como líder de todo o mundo árabe, foi exposto como colaborador numa operação desumana liderada por um inimigo, e apenas para obter os favores (e o dinheiro) dos norte-americanos. Os seus inimigos internos, a Irmandade Muçulmana, exploraram esta situação e o denunciaram, publicamente, aos olhos de seu próprio povo.
Dificilmente Mubarak teria podido manter-se na posição em que estava. Mas a multidão palestiniana livrou-o da tarefa de decidir. Decidiram por ele. Os palestinianos irromperam no Egipto como um tsunami. Agora, Mubarak que decida quando sucumbirá completamente a Israel e reimporá o bloqueio contra os seus irmãos árabes.
E quanto à experiência de Barak? O que vai acontecer agora? Barak tem poucas opções:
(a) Reocupar Gaza. O exército não gosta desta ideia. Para os comandantes militares, a reocupação exporá milhares de soldados israelitas a uma guerra de guerrilhas cruel, diferente de todas as intifadas conhecidas.
(b) Apertar novamente o bloqueio e pressionar Mubarak o mais possível, inclusive com o lóbi israelita no Congresso dos EUA, para privá-lo dos milhares de milhões que recebe anualmente em troca de serviços prestados.
(c) Fazer do castigo um prémio, e entregar a Faixa de Gaza a Mubarak, como se este fosse o objectivo secreto de Barak, desde o começo. Passaria a ser tarefa do Egipto garantir a segurança de Israel, evitar a chuva de Qassams e expor os seus próprios soldados à guerra de guerrilhas na Palestina - depois de o Egipto ter imaginado que se havia livrado definitivamente desta área de conflito, e depois de toda a infra-estrutura da Palestina ter sido destruída pela ocupação israelita. É provável que Mubarak responda: "É muita gentileza sua, mas, não, não, muito obrigado."
O bloqueio da Faixa de Gaza é crime de guerra. E é pior que isto: é uma estupidez brutal
* Uri Avnery, 85 anos, é membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelita). Em adolescente, Avnery foi combatente no Irgun e mais tarde soldado no exército israelita. Foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Foi o primeiro israelita a estabelecer contacto com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974. Foi durante 40 anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelita da Palestina, incluindo My Friend, the Enemy (Meu amigo, o inimigo) e Two People, Two States (Dois povos, dois Estados).
Fonte: Worse than a Crime, publicado em 25/1/2008 em Gush Shalom ["Grupo da Paz"], em . Tradução de Caia Fittipaldi para o Blog do Bourdoukan. Adaptação para www.esquerda.net por Luís Leiria