Esqueçam os Qassams. Esqueçam os disparos de morteiro. Eles não são nada comparado com aquilo que o Hamas lançou contra nós nesta semana:
O chefe do governo do Hamas na Faixa de Gaza, Ismail Haniyeh, dirigiu-se a um jornal israelita e propôs um cessar fogo. Fim dos Qassams, das morteiradas, dos atentados suicidas, fim das incursões militares israelitas na Faixa, fim dos "assassínios selectivos" de dirigentes. Um cessar-fogo total. E não só na Faixa de Gaza, mas também na Margem Ocidental do Jordão.
A direcção militar israelita explodiu de fúria? Por quem se toma esse filho da mãe? Acha que pode travar-nos com truqes sujos deste tipo?
Esta é a segundo vez em poucos dias que é feita uma tentativa de prejudicar os nossos planos de guerra.
Há duas semanas, as organizações de serviços secretos norte-americanas declararam, num relatório autorizado, que o Irão parou há quatro anos a sua tentativa de produzir uma bomba nuclear.
Em vez de suspirar de alívio, os funcionários israelitas reagiram com raiva indisfarçável. Desde então, todos os comentadores israelitas. tal como a nossa enorme rede de plumitivos alugados por esse mundo fora, tentaram desacreditar esse documento. É mentiroso, infundado, movido por uma agenda escondida e sinistra.
Mas, milagrosamente, o relatório sobreviveu ileso. Não foi sequer arranhado.
O relatório, assim parece, arredou da mesa qualquer possibilidade de ataque militar americano e/ou israelita contra o Irão. E agora aparece a iniciativa de Haniyeh, que põe em perigo a estratégia da nossa direcção militar para a Faixa de Gaza.
E, mais uma vez, o coro do exército entra em acção. Generais em uniforme e à paisana, correspondentes militares, correspondentes políticos, comentadores de todos os géneros e cores, políticos da esquerda à direita - todos atcam a proposta de Haniyeh.
A mensagem é: ela não pode ser aceite em circunstância alguma! Ela não deve sequer ser tomada em conta! Pelo contrário: a proposta mostra que o Hamas está prestes a quebrar e portanto a guerra contra ele tem de ser intensificada, o bloqueio contra Gaza tem de ser apertado, mais dirigentes têm de ser mortos - e, na realidade, por que não matar o próprio Haniyeh? Estamos à espera de quê?
Um paradoxo inerente ao conflito desde o seu início encontra-se aqui em acção: se os palestinianos estão fortes, é perigoso fazer a paz com eles. Se estão fracos, não é preciso fazer a paz com eles. Duma forma ou doutra, eles têm de ser quebrados.
"Não há nada para conversar!", declarou Ehud Olmert imediatamente. Portanto está tudo bem e a carnificina pode continuar.
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E, na verdade, está a continuar. Na Faixa de Gaza e à volta dela, está a ser desencadeada uma pequena guerra cruel. Como habitualmente, cada lado afirma reagir apenas às atrocidades do outro lado.
O lado israelita afirma que está a responder aos Qassams e morteiros. Que Estado soberano iria tolerar ser bombardeado por mísseis mortíferos do outro lado da fronteira?
A verdade é que milhares de mísseis mataram apenas um número minúsculo de pessoas - menos de um centésimo das que são mortas ou feridas em acidentes de viação. Mas os Qassams semeiam o terror, os habitantes de Sderot e arredores exigem vingança e reforço das suas casas, o que poderia custar uma fortuna.
Se os Qassams verdadeiramente incomodassem os nossos dirigentes políticos e militares, eles teriam agarrado imediatamente a oferta de cessar-fogo. Mas os dirigentes não se importam verdadeiramente com o que sucede à população de Sderot, na "periferia" geográfica e política, longe do centro do país. Ela não tem peso político ou económico. Aos olhos da nossa direcção, o seu sofrimento é, bem vistas as coisas, tolerável. Ele tem até um lado positivo: fornece um pretexto ideal para as acções do exército.
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O OBJECTIVO estratégico israelita em Gaza não é o de pôr fim aos Qassams. Ele continuaria a ser o mesmo, ainda que não caísse um único Qassam sobre Israel.
O verdadeiro objectivo é o de quebrar os palestinianos, o que significa quebrar o Hamas.
O método é simples, primitivo mesmo: reforçar o bloqueio por terra, mar e ar, até que a situação da Faixa se torne absolutamente intolerável.
A interrupção total dos abastecimentos, excepto o mínimo absolutamente necessário para impedir a morte por inanição, reduziu a vida a um nível inumano. Não há realmente importações nem exportações, a vida económica chegou a um ponto morto, o custo de vida atingiu valores astronómicos. O abastecimento de gasolina já foi reduzido a metade e está previsto que ainda o seja mais. O abastecimento de água pode ser cortado à vontade.
A actividade militar está a aumentar gradualmente. O exército israelita leva a cabo incursões diárias com tanques e bulldozers blindados, para ir mordendo as margens de áreas habitadas e atrair os combatentes palestinianos a uma confrontação em campo aberto. Em cada dia são mortos cinco a dez combatentes palestinianos, e alguns civis. Em cada dia são raptados habitantes das localidades para lhes extrair informações. O objectivo declarado é criar atrito e desgaste, e talvez também preparar a reconquista da Faixa - mesmo se os chefes do exército querem evitá-lo praticamente a qualquer preço.
Um após outro, os dirigentes e comandantes palestinianos estão a ser mortos a partir do ar. Todos os pontos da Faixa estão expostos aos aviões israelitas, aos helicanhões e aos drones. Tecnologia de ponta torna possível localizar os "filhos da morte", os que estão marcados para morrer, e completa o quadro uma extensa rede de informadores e agentes, alguns deles coagidos, contruída com muita antecedência.
Os chefes do exército esperam que apertando todos estes parafusos possam levar a população local a revoltar-se contra o Hamas e as outras organizações combatentes. Toda a resistência palestiniana à ocupação se desmoronaria. todo o povo palestiniano levantaria as mãos a render-se e a submeter-se às autoridades da ocupação, que fariam como entendessem - expropriar terras, estender colonatos, erguer muros e barragens nas estradas, desmembrar a Margem Ocidental numa série de enclaves semi-autónomos.
Neste plano israelita, o papel reservado à Autoridade Palestiniana é o de actuar como sub-empreiteira da segurança israelita, em troca dum fluxo de dinheiro que assegure o seu controlo sobre os enclaves.
No final desta fase do conflito israelo-palestiniano, o povo palestiniano deverá ficar cortado em pedaços e indefeso face à expansão israelita. O choque histórico entre a força imparável (o empreendimento sionista) e o objecto inamovível (a população palestiniana) acabará com o esmagamento da resistência palestiniana.
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PARA OBTER SUCESSO neste plano, é preciso jogar um sofisticado jogo diplomático. Em circunstância alguma se pode perder o apoio da comunidade internacional. Pelo contrário, o mundo inteiro, liderado pelos EUA e pela UE, tem de apoiar Israel e encarar as suas acções como uma justa luta contra o terrorismo palestiniano, ele próprio uma parte integrado do "terrorismo internacional ".
A Conferência de Annapolis e depois dela o encontro de Paris eram passos importantes nesta direcção. Quase todo o mundo, incluindo a maior parte do mundo árabe, aceretou o passo com o plano isralita - talvez ingenuamente, talvez cinicamente.
Os acontecimentos depois de Annapolis desenrolaram-se conforme previsto: não começaram negociações, ambos os lados apenas jogaram com imagens. No dia seguinte a Annapolis, o governo israelita anunciou enormes projectos de construção para lá da Fronteira Verde. Quando Condoleezza Rice murmurou algumas palavras de oposição, anunciou-se que esses planos tinham sido arquivados. Na verdade, eles continuam a aplicar-se a toda a velocidade.
Como é que Olmert e os seus colegas enganam todo o mundo? Benjamin Disraeli disse em tempos sobre um certo político britânico: "O ilustre cavalheiro surpreendeu os seus adversários tomando banho no mar e tirou as roupas." Nós, os pioneiros da solução dos dois Estados, podemos dizer isso sobre o nosso governo. Ele roubou a nossa bandeira e embrulhou-se nela para esconder as suas intenções.
Em perspectiva ampla, existe agora um consenso mundial de que a paz na nossa região deve ser baseada na coexistência de um Estado de Israel e de um Estado da Palestina. O nosso governo introduziu-se aí e explora esse acordo com um objectivo totalmente diferente: o domínio de Israel sobre todo o país e a transformação dos centros populacionais palestinianos numa série de bantustões. Esta é, de facto, uma solução de um Estado (Grande Israel), disfarçada de solução de dois Estados.
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PODERÁ este plano ter sucesso?
A batalh de Gaza está em pleno desenvolvimento. Apesar da enorme superioridade militar do exército israelita, ela não é unilateral. Mesmo os comandantes israelitas reconhecem que as forças do Hamas estão a consolidar-se. Elas treinam-se intensamente, as suas armas estão a tornar-se mais eficazes e mostram muita coragem e determinação. Aparentemente, a morte dos seus comandantes e combatentes numa carnificina permanente não lhes afecta o moral. Esta é uma das razões po que o exército israelita está a hesitar em reconquistar a Faixa de Gaza.
Dentro da Faiza, ambas as organizações principais gozam de amplo apoio público - a manifestação organizada pela Fatah para homenagear Yassir Arafat e a contra-manifestação organizada pelo Hamas atraíram, cada uma, centenas de milhares de participantes. Mas parece que a grande maioria do público palestiniano deseja unicade nacional para lutar contra a ocupação. Ele não quer coacção religiosa, mas tão-pouco vai tolerar uma direcção que colabore com a ocupação.
O governo pode estar muito enganado em esperar obediência da Fatah. Na competição com o Hamas, a Fatah poderá surpreender-nos voltando a ser uma organização combatente. O fluxo de dinheiro para a Autoridade poderá não impedir que isto aconteça. Ze'ev Jabotinsky era mais sábio do que Tony Blair ao dizer, aqui há 85 anos, que não se pode subornar um povo inteiro.
Se o exército israelita invadir Gaza para reconquistá-la, a populção irá apoiar os combatentes. Ninguém sabe como ela reagirá se a miséria económica piorar. Os resultados podem ser inepserados. A experiência com outros movimentos de libertação indica que a miséria pode quebrar a população, mas também pode reforçá-la.
Este é, em termos simples, um teste existencial para o povo palestiniano - talvez o mais duro desde 1948. E também é um teste para a política astuta de Ehud Olmert, Ehud Barak, Tzipi Livni e dos chefes do exército.
Não é provável que venha a existir um tal cessar-fogo. Ao princípio, Olmert rejeitou-o imediatamente. Depois, isto foi desmentido. Depois desmteniu-se o desmentido.
Os habitantes de Sderot teriam provavelmente gostado de aceitar o cessar-fogo. Mas, afinal, quem se incomoda em perguntar-lhes?
* Uri Avnery é um escritor israelita e activista pacifista do movimento Gush Shalom ("Paz Agora"). Ele é co-autor do livro de CounterPunch book The Politics of Anti-Semitism.