Na semana passada, foram verificadas várias leis sociais e físicas.
A primeira lei determina que, ao incrementar-se a pressão sobre uma área fechada sem válvula de segurança, ela acabará por explodir. O cerco que Israel impôs a 1,5 milhões de homens, mulheres, idosos e crianças residentes na Faixa de Gaza resultou numa crise humanitária e fome que levaram a população a romper o muro que selava hermeticamente Gaza. O muro foi derrubado no seu ponto mais fraco, na fronteira com o Egipto, permitindo a milhares de pessoas esfomeadas e cercadas entrarem no Sinai e acumularem alimentos e medicamentos.
A segunda lei determina que os seres humanos nem sempre reagem como previram os órgãos de poder; em vez de cederem à pressão de Israel, os residentes de Gaza decidiram romper o cerco por si próprios.
A terceira lei tem a ver com as supresas dos círculos dominantes – os serviçoes de inteligência, militares, think tanks e “analistas de assuntos árabes” bem como o governo israelita não previram o que aconteceu na última semana em Rafah, e ninguém notou a destruição do muro pelo governo palestiniano de Gaza. E no entanto aqui está uma outra ocasião em que toda esta gente foi surpreendida, como o fôra pela primeira Intifada, pela rejeição das “generosas ofertas” de Barak por Yasser Arafat, pela segunda Intifada e pelas capacidades de resposta do Hezbollah no Verão de 2006.
Esta surpresa não é o resultado da estupidez dos que são supostos entender o que poderia acontecer, e sim da cegueira do poderoso que é incapaz de olhar os que estão sob a sua bota como seres humanos com vontade própria e com a sua própria capacidade para tomar decisões. Aos olhos do ocupante, o ocupado é um objecto, não um sujeito capaz de pensar e de reagir fora do cenário definido pelo ocupante. Através da História, esta cegueira acompanhou todas as guerras coloniais, da Argélia ao Afeganistão, do Vietname ao Iraque – o colonialismo israelita não constitui excepção.
O dia em que os habitantes de Gaza romperam o muro da sua prisão é na verdade um dia digno de comemoração, tal como o da revolta do Soweto na África do Sul ou da insurreição de Budapeste há 50 anos, uma comemoração que distingue entre o que é humano e o que é próprio dos animais: o desejo de liberdade e a vontade de moldar a própria vida. E se a iniciativa dos habitantes de Gaza e dos seus dirigentes representa o que é humano, o cerco a Gaza representa a bestialidade do ocupante que, com a desculpa esfarrapada dos morteiros Qassam sobre a cidade de Sderot, não hesita em impor um castigo que condena à fome 1,5 milhão de pessoas. Na verdade, o encorajamento levado a todo o lado pelas imagens de televisão chegadas de Gaza não deve apagar o facto simples e doloroso de que não acabou a violência de Israel contra os habitantes de Gaza. É razoável supor que os estados-maiores militares estão a cozinhar actos ainda mais cruéis de castigo do que as “experimentações” que Ehud Barak apregoou. A “Aliança contra o Cerco de Gaza” fez bem em não cancelar a caravana de solidariedade planeada para 26 de Janeiro, porque os habitantes de Gaza continuam a necessitar dessa mesma solidariedade e por muito tempo continuarão.
Os políticos, assessores, altos funcionários e jornalistas serão responsabilizados pelo que sem dúvida é definido como um crime de guerra. No banco dos réus, o ministro da Defesa, Ehud Barak, terá jus a um lugar especial de (des)honra. O homem que experimenta em seres humanos é o mesmo que foi responsável pelo massacre de cidadãos palestinianos de Israel em Outubro de 2000, pelo sangrento ataque planeado nas cidades da Cisjordânia no final de 2000, já para não falar das suas acções na campanha militar. Este homem ensanguentado anda com a marca de Caim na sua testa, e quando viajar pelo mundo tem de ser tratado como um criminoso de guerra pelo qual os tribunais esperam para fazer justiça.
Menachem Mazuz, o procurador-geral israelita, anunciou esta semana que ninguém seria julgado pelo massacre que ocorreu em Outubro de 2000. Ehud Barak, o primeiro responsável, não devia ter sido mandado em paz mais uma vez.
Não há muito tempo, sustentei que Israel aplica uma política genocida na Faixa de Gaza. Hesitei antes de usar o termo tão carregado, e no entanto decidi-me a adoptá-lo. Os ecos que obtive indicavam mal-estar em utilizar um termo assim. Repensei-o ainda, mas concluí com convicção ainda maior: é a única forma apropriada para descrever o que o exército israelita está a fazer na Faixa de Gaza.
Em 28 de Dezembro de 2006, a organização israelita de direitos humanos B’tselem publicou o seu relatório anual sobre atrocidades israelitas nos territórios ocupados. Em 2006, as forças israelitas mataram 660 pessoas, o triplo do que tinham matado no ano anterior (cerca de 200). A maioria dos mortos são da Faixa de Gaza Strip, onde as forças israelitas demoliram quase 300 casas e desalojaram famílias inteiras. Desde o ano 2000, quase 4.000 palestinianos foram mortos pelas forças israelitas, metade deles crianças, e mais de 20.000 foram feridos.
A questão não é apenas a da escalada de homicídios intencionais, mas a da estratégia.
Anexação
O decisores políticos israelitas confrontam-se na Cisjordânia e na Faixa de Gaza com duas realidades diferentes. Na primeira, estão a concluir a construção da sua fronteira oriental. O seu debate ideológico interno está concluído e o seu plano director de anexar metade da Cisjordânia está a atingir a velocidade de cruzeiro.
A última fase foi retardade devido às promessas feitas por Israel, sob a vigência do “road map”, de não construir novos colonatos. Israel encontrou duas formas de contornar este problema. Primeiro, definiu um terço da Cisjordânia como Grande Jerusalém, o que lhe permitiu construir cidades e centros urbanos dentro desta nova área anexada. Em segundo lugar, expandiu velhos colonatos para proporções tais que já não é preciso construir novos colonatos.
Transferência silenciosa
Os colonatos, as bases do exército, as estradas e o muro vão permitir a Israel anexar quase metade da Cisjordânia até 2010. Dentro destes territórios, as autoridades israelitas vão continuar com a política de transferência silenciosa contra o número considerável de palestininanos que permanecem.
Não há pressa. No que diz respeito aos israelitas, eles estão na mó de cima; a combinação diária, desumanizante e abusiva de exército e burocracia concorre aqui para o processo de expropriação.
Todos os partidos governantes, do Labor ao Kadima, aceitam o pensamento estratégico de Ariel Sharon, segundo o qual esta política é muito melhor do que a proposta pelos “transferistas” descarados ou higienistas étnicos como Avigdor Liberman. Na Faixa de Gaza não há uma clara estratégia israelita, mas há a experimentação diária com uma. Os israelitas encaram a Faixa como uma entidade geo-política diferente da Cisjordânia. O Hamas controla Gaza, ao passo que Mahmoud Abbas parece governar a fragmentada Cisjordânia com a benção israelita e norte-americana.
Não há na Faixa terra que Israel cobice e não há nenhuma retaguarda, como a Jordânia, para onde os palestinianos possam ser expulsos.
A limpeza étnica é neste caso ineficaz. A anterior estratégia na Faixa consistia em ghettoizar aí os palestinianos, mas não está a funcionar. Os judeus sabem-no da sua história, melhor do que ninguém. No passado, o passo seguinte contra comunidades como esta era ainda mais bárbaro. É difícil prever o que o futuro reserva à comunidade de Gaza community: ghettoizada, psota em quarentena, indesejada e demonizada.
Deitando fora a chave
Construir a prisão e lançar a chave ao mar, como disse o professor sul-africano John Dugard, foi uma opção contra a qual os palestinianos da Faixa reagiram com força em Setembro de 2005. Decididos a mostrarem que continuavam a fazer parte da Margem Ocidental e da Palestina, eles lançaram o primeiro número de mísseis significativo contra o ocidente do Negev. A flagelação foi uma resposta à massiva campanha israelita de detenções de pessoas do Hamas e da Jihad na área de Tul Karem.
Israel respondeu com a operação “Primeira Chuva”. Voos supersónicos foram feitos sobre Gaza para aterrorizar a população inteira, seguidos por pesados bombardeamentos por terra, mar e ar. A lógica, explicou o exército israelita, era a de enfraquecer o apoio da comunidade aos lançadores de morteiros. Como era de esperar, também por parte dos israelitas, a operação apenas aumentou o apoio aos lançadores de morteiros.
A verdadeira intenção era experimental. Os generais israelitas queriam saber como essas operações seriam recebidas em Israel, na região e no mundo. E parece que a resposto foi: “muito bem”; ninguém se interessou pelo número de mortos e pelas centenas de palestinianos feridos.
As operações seguintes foram feitas sobre o modelo de “Primeira Chuva”. A diferença era maispoder de fogo, mais baixas, mais danos colaterais e, como era de prever, mais morteiros Qassam em resposta. As medidas adicionais asseguraram um aprisionamento completo dos gazanos através do boicote e do bloqueio, com o qual a União Europeia vergonhosamente colabora.
A captura do soldado israelita Gilad Shalit em Junho de 2006 foi irrelevante para o esquema geral, mas forneceu aos israelitas uma oportunidade para uma escalada ainda maior. No fim de contas, não houve estratégia que se seguisse à decisão de Sharon de retirar 8.000 colonos de Gaza, cuja presença dificultava as missões “punitivas”. De então para cá, as acções ”punitivas” continuam e tornaram-se uma estratégia.
A “Primeira Chuva” foi substituída por “Chuvas de Verão”. Num país em que não há chuva no Verão, só se pode esperar dilúvios de bombas de F-16 e barragens de artilharia a atingir o povo da Faixa.
“Chuvas de Verão” trouxe uma nova componente: a invasão terrestre em partes da Faixa de Gaza. Isto permitiu ao exército matar pessoas e apresentar isso copmo resultado inevitável duma luta renhida em áreas densamente povoadas e não como um resultado da política israelita.
Chuvas de Verão, núvens de Outono
Quando o Verão terminou, veio a ainda mais eficinete “Núvens de Outono”: a partir de 1 de Novembro de 2006, os israelitas mataram 70 civis em menos de 48 horas. No fim desse mês, quase 200 tinham sido mortos, metade deles mulheres e crianças.
Alguma desta actividade foi acompanhada por ataques israelitas contra o Líbano, tornando mais fácil completar as operações sem grande atenção, para já não falar de crítica, vinda de fora. Da “Primeira Chuva” à “Núvens de Outono”, há uma escalada em todos os parâmetros. O primeiro é o de apagar a distinção entre alvos “civis” e “não-civis”: a população é o alvo principal da operação do exército. O segundo é a escalada nos meios: emprego de todas as máquinas possíveis para matar que o exército israelita possua. O terceiro é a escalada no número de baixas: em cada operação futura, será provável que morra ou seja ferido um maior número de pessoas. Por fim, e mais importante, as operações tornam-se uma estratégia – a forma como Israel tenciona resolver o problema da Faixa de Gaza.
Uma transferência silenciosa na Margem Ocidental e uma política de genocídio calculado na Faixa de Gaza – são as duas estratégias que Israel utiliza hoje em dia. De um ponto de vista eleitoral, a política de Gaza é problemática, porque não produz resultados palpáveis; a Cisjordânia sob Mahmoud Abbas está a vergar-se à pressão israelita e não há força significativa que trave a estratégia israelita de anexação e expropriação.
Gaza defende-se
Mas a Faixa continua a defender-se. Isto permitiria ao exército israelita iniciar operações genocidas mais amplas no futuro, mas também há o grande perigo de que, como em 1948, o exército exija uma acção “punitiva” mais drástica e sistemática contra a população sitiada de Gaza. Ironicamente, a máquina de matar israelita abrandou ultimamente. Os seus generais estão satisfeitos por o morticínio interno na Faiza fazer o seu trabalho.
Eles observam deleitados a guerra civil latente na Faixa, que Israel fomenta e encoraja. A responsabilidade por acabar com a a luta interna cabe aos próprios grupos palestinianos, mas a interferência israelita e norte-americana, o encarceramento constante, a fome e o estrangulamento da Faixa – tudo torna muito difícil um processo de paz interno.
Cortando o oxigénio de Israel
O que se desencadeia em Gaza é uma batalha entre agentes dos EUA e de Israel por um lado – talvez relutantes e involuntários, mas que nem por isso dançam menos segundo a música israelita – e aqueles que se opõem a esses planos. A oposição que assumiu o controlo em Gaza fê-lo de uma forma que é muito difícil aceitar ou aplaudir.
Se aí se mantiver a luta, a “Chuva de Verão” israelita voltará a cair sobre o povo da Faixa, espalhando desolação e morte. Não há outro modo de travar Israel que não sejam o boicote, o desinvestimento e as sanções. O único ponto fraco da máquina de matar são as suas linhas de oxigénio para a civilização “ocidental” e a opinião pública. Ainda é possível furá-las e pelo menos tornar mais difícil aos israelitas levarem a cabo a sua futura estratégia de eliminar o povo palestiniano, varrendo-o da Cisjordânia e cometendo um genocídio na Faixa de Gaza.
* Ilan Pappe é leitor senior no Departamento de Ciência Política da Universidade de Haifa, e catedrático do Instituto Emil Touma para Estudos Palestinianos em Haifa. Os seus livros incluem, entre outros, The Making of the Arab-Israeli Conflict (London and New York 1992), The Israel/Palestine Question (London and New York 1999), A History of Modern Palestine (Cambridge 2003), The Modern Middle East (London and New York 2005) e o mais recente Ethnic Cleansing of Palestine (2006).