O fornecedor de água à Faixa de Gaza apelou aos 1,5 milhão de habitantes da região para que fervam a sua água de beber, atribuindo a escassez de clorina para purificação ao bloqueio da Faixa.
O exército israelita disse que até 4ª feira não foi apresentado nenhum pedido de clorina pelos palestinianos e que estava a tentar organizar com urgência um novo carregamento para Gaza.
A Instalação de Água da Municipalidade Costeira informou os habitantes de que as sanções deixaram Gaza sem equipamento e sem stocks necessários para manter o sistema de água e que as entregas de clorina pararam desde 21 de Janeiro. Mais de um terço da água de Gaza está agora sem ser tratada, declarou o vice-director Maher Najjar, preocupado com a catástrofe sanitária que pode resultar duma possível contaminação. Najjar pediu ajuda à comunidade internacional.
A maioria dos habitantes de Gaza não recebe água regularmente devido à escassez de combustível utilizado para bombear a água. Muitos já usam filtros ou compram água engarrafada porque a qualidade da água da torneira é geralmente má.
(…)
Najjar afirmou que 52 dos 140 poços usados para abastecer Gaza com água estavam sem clorina. “Calculo que para o fim da semana todos os poços ficarão sem clorina", disse ele.
Nafiz Alia, que gere o stock de clorina, afirmou que eram precisas 65 toneladas de clorina por mês e que o mais recente fornecimento a Gaza continha 30 toneladas, o que o obrigou a usar o stock de reserva para completar o que faltava.
(…)
A maioria dos habitantes de Gaza que pode pagar por isso filtra a água salbora das torneiras antes de bebê-la. Mas, segundo Najjar, isso não mata as bactérias.
Ele acrescentou que o verdadeiro perigo está em que as crianças bebam água não tratada.
Polícia israelita detém 5 palestinianos que protestaram contra escavações
Por Meron Rapoport, correspondente do Haaretz
A polícia deteve cinco palestinianos residentes na localidade de Silwan, em Jerusalém oriental, todos no dia seguinte a terem apresentado uma queixa ao Supremo Tribunal de Justiça com vista a fazer suspender uma escavação por baixo das suas casas, promovida pela Autoridade Israelita de Arqueologia.
Segundo a AIA, a escavação descobriu os restos de um canal de drenagem da era do Segundo Templo. A escavação está a ser financiado pela Elad, uma organização destinada a promover a judaização de Jerusalém oriental.
Os palestinianos, que receiam uma danificação das suas casas pela escavação, pediram ao tribunal que mandasse suspendê-la no domingo, com o fundamento de a AIA não os ter informado, como a lei exige, de que pretendia escavar nas suas propriedades. O tribunal deu à AIA 14 dias para responder.
Na semana passada manifestantes palestinianos impediram a AIA de continuar com a escavação. No domingo tentaram fazer o mesmo, mas a polícia interveio para permitir que a escavação continuasse.
Depois disso, dois habitantes de Silwan, acompanhados por um activista israelita, foram à polícia apresentar uma queixa contra a Elad por violação da propriedade privada. Mas, em vez de aceitar a queixa, a polícia deteve os queixosos, por suspeita de levantarem entraves à escavação.
Mais tarde, antes da madrugada de segunda-feira, a polícia realizou um raid em Silwan e deteve dois outros habitantes que tinham assinado a queixa ao tribunal, bem como um terceiro, cujo pai é referido no documento. A polícia afirmou que foram detidos por suspeita de “danificarem urnas e bancos da fonte de Shiloah", uma área administrada pela Elad, e acrescentou que se esperava para breve a realização de outras detenções.
Sei que você e eu estamos impacientes por ver a paz no Médio Oriente, mas antes de você continuar a falar das condições indispensáveis do ponto de vista israelita, quero que saiba o que penso. Por onde começar? Digamos, por 1964.
Permita-me que cite as minhas próprias palavras aquando do meu julgamento. Elas são tão acertadas agora como eram naquele tempo: "Combati a dominação branca e combati a dominação negra. Acarinhei o ideal de uma sociedade democrática e livre em que todos pudessem viver em conjunto, em harmonia e com iguais oportunidades. É um ideal que espero viver e que espero atingir. Mas, se for preciso, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer".
Hoje, o mundo, negro e branco, reconhece que o apartheid não tem futuro. Na África do Sul, ele acabou graças à nossa própria acção de massas decisiva, para construir a paz e a segurança. Esta campanha massiva de desobediência e doutras acções só podia conduzir ao estabelecimento da democracia.
Talvez a si lhe pareça estranho identificar a situação na Palestina ou, mais especificamente, a estrutura das relações políticas e culturais entre palestinianos e israelitas, como um sistema de apartheid. O seu recente artigo "Bush’s First Memo", no New York Times de 27 de Março de 2001, demonstra-o.
Você parece surpreendido por ouvir dizer que ainda há problemas por resolver de 1948, o mais importante dos quais é o do direito de regresso dos refugiados palestinianos. O conflito israelo-palestiniano não é só um problema de ocupação militar e Israel não é um país que tenha sido criado "normalmente" e se tenha lembrado de ocupar outro país em 1967. Os palestinianos não lutam por um "Estado" e sim pela liberdade e a igualdade, exactamente como nós lutámos pela liberdade na África do Sul.
No decurso dos últimos anos, e em especial desde que o Partido Trabalhista foi para o governo, Israel mostrou que não tinha sequer a intenção de devolver o que ocupou em 1967, que os colonatos vão permanecer, que Jersualém ficaria sob soberania exclusivamente israelita e que os palestinianos não teriam nenhum Estado independente, antes seriam colocados sob a dependência económica de Israel, com controlo israelita sobre as fronteiras, sobre a terra, sobre o ar, a água e o mar.
Israel não pensava num "Estado" e sim numa "separação". O valor da separação mede-se em termos da capacidade de Israel para manter judeu um Estado judeu e de não ter uma minoria palestiniana que pudesse no futuro transformar-se em maioria. Se isso acontecesse, obrigaria Israel a tornar-se ou um Estado laico e bi-nacional ou a tornar-se um Estado de apartheid, não só de facto, mas também de direito.
Thomas, se você prestar atenção às sondagens israelitas ao longo dos últimos 30 a 40 anos, vai ver claramente um racismo grosseiro, com um terço da população a declarar-se abertamente racista. Este racismo é do tipo "Odeio os árabes" e "quero que os árabes morram". Se vo´cê também prestar atenção ao sistema judicial israelita, vai ver que há discriminação contra os palestinianos, e se considerar especialmente os territórios ocupados em 1967 vai ver que há dois sistemas judiciais em acção, que representam duas abordagens diferentes da vida humana: uma para a vida palestiniana, ou para a vida judia.
Além disso, há duas atitudes diferentes sobre a propriedade e sobre a terra. A propriedade palestiniana não é reconhecida como propriedade privada, porque pode ser confiscada.
Para a ocupação israelita da Cisjordânia e de Gaza, há um factor suplementar a tomar em conta. As chamadas "Zonas autónomas palestinianas" são bantustões. São entidades restritas no seio da estrutura de poder do sistema israelita de apartheid.
O Estado palestiniano não pode ser um sub-produto do Estado judeu, só para conservar a pureza judaica de Israel . A discriminação racial de Israel é a vida quotidiana dos palestinianos, porque Israel é um Estado judeu, os judeus israelitas têm direitos especiais de que os não-judeus não beneficiam. Os árabes palestinianos não têm lugar no Estado "judeu".
O apartheid é um crime contra a humanidade. Israel privou milhões de palestinianos da sua liberdade e da sua propriedade. Ele perpetura um sistema de discriminação racial e de desigualdade. Encarcerou e torturou sistematicamente milhares de palestininaos, em violação do direito internacional. Desencadeou uma guerra contra a população civil e em especial contra as crianças. As respostas da África do Sul em matéria de violação dos direitos humanos provenientes das políticas de deportação e das políticas de apartheid fizeram luz sobre o que a sociedade israelita deve necessariamente levar a cabo para que se possa falar duma paz justa e duradoura no Médio Oriente e do fim da política de apartheid. Thomas, eu não abaondono a diplomacia do Médio Oriente, mas não serei condescendente consigo como o são os seus apoiantes. Se você quer a paz e a democracia, apoiá-lo-ei. Se quer formalizar o apartheid, não o apoiarei. Se quer apoiar a discriminação racial e a limpeza étnica, conte com a nossa oposição. Quando tiver decidido, dê-me um telefonema.
Anunciámos em Dezembro último a recusa do poeta Aharon Shabtai a participar no próximo Salão do Livro, que vai realizar-se em Paris de 14 a 19 de Março próximos, e que escolheu Israel como "convidado de honra", por ocasião do "60ª aniversário da sua existência". Esta operação de propaganda a favor dum país que multiplica os seus crimes de guerra, que condena todo um povo à fome e que o martiriza desde há décadas, suscita uma emoção aparentemente mais forte em Itália, em que a mesma operação está programada para a Primavera em Turim. O boicote organiza-se e várias personalidades de renome internacional explicam a sua necessidade. Segue-se a posição do escritor britânico Tariq Ali.
Por que não vou participar na Feira do Livro de Turim
Por Tariq Ali
Quando dei o meu acordo para participar na Feira do Livro de Turim, coisa que já tinha feito no passado, não imaginava que o "convidado de honra" seria Israel no seu 60º aniversário. Mas esse é também o 60º aniversário daquilo que os palestinianos designam como a « Nakba », a catástrofe, que lhes caiu em cima quando foram expulsos das suas aldeias, muitos deles foram mortos e muitas mulheres foram violadas por colonos. Tudo factos que já ninguém se atreve a contestar.
Por que é que a Feira do Livro de Turim não convida 30 escritores israelitas e 30 escritores palestinianos - ( e garanto-vos que eles existem e que são grandes poetas e grandes romancistas) ? Isso seria compreendido como um gesto positivo e pacífico, e aí poderia ter lugar um debate positivo, um pouco como uma versão literária do « Diwan » (a orquestra) de Daniel Barenboim, meio israelita, meio palestiniano.
Um gesto deste tipo teria reaproximado os povos. Mas não, os comissários culturais acham são mais espertos. Sucedeu-me noutras ocasiões discutir duramente com escritores israelitas que visitavam a feira e tê-lo-ia feito mais uma vez com prazer se as condições fossem outras.
O que decidiram fazer é uma infame provocação.
Nota-se que a cultura está cada vez mais ligadaa às prioridades políticas da rede Estados Unidos/União Europeia. O ocidente está cego aos sofrimentos dos palestinianos. A guerra israelita contra o Líbano, os relatos que chegam diaraimente do ghetto de Gaza, não comovem a Europa dos funcionários. Em França, como sabemos, é praticamente impossível criticar Israel. Na Alemanha também, por razões especiais. Seria uma tristeza que a Itália tomasse o mesmo caminho. Quantas vezes já sublinhámos que nada tem de anti-semita criticar a política colonial de Israel!
Aceitá-lo significaria tornarno-nos vítimas voluntárias da chantagem que o establishment israelita utiliza para reduzir ao silêncio os seus críticos. Há corajosos críticos israelitas como Aharon Shabtai, Amira Hass, Yitzhak Laor e outros, que não permitirão que as suas vozes sejam silenciadas desse modo. Shabtai recusou assistir a esta Feira.
Como poderia eu porceder doutro modo?
Uma coisa é apoiar o direito de Israel a existir, coisa que faço e sempre fiz. Mas daí a extrapolar que este direito à existência equivalha a um cheque em branco para Israel fazer o que quer aos que pretende expulsar e que trata como sub-humanos, isso é inaceitável.
Pessoalmente sou a favor de um só Estado Israel/Palestina em que todos os cidadãos sejam iguais. Dir-me-ão que se trata duma utopia Talvez, mas a longo prazo é a única solução. Devido aos temas dos meus romances, perguntaram-me muitas vezes (e mais recentemente em Madison, no Wisconsin) se seria possível recriar a época melhor, a de Al-Andalus e Sicília (NdT : (Al-Andalus : o conjunto das terras da Península Ibérica sob dominação muçulmana na Idade Média) quando três culturas coexistiram longamente. A minha resposta é sempre a mesma: o único lugar em que seria possível recriá-lo seria Israel/Palestina.
Vivemos no mundo dos dois pesos e duas medidas, mas não somos obrigados a aceitá-lo. Vemos por vezes casos de indivíduos ou de grupos a quem foi feito mal e que por sua vez o fazem a outros. Mas isto não justifica aquilo. Foi o anti-semitismo europeu que tolerou o judeocídio na Segunda Guerra Mundial e agora foram os palestinianos que se tornaram vítimas dele. Alguns israelitas são conscientes disso, mas preferem pensar noutra coisa. Muitos europeus encaram hoje os palestinianos e os muçulmanos como se encarava os judeus no passado. Ironia visível nos comentários da imprensa e nas reportagens da televisão. Em praticamente todos os países europeus. Que pena que a Feira do Livro de Turim tenha decidido apoiar os novos preconceitos que assolam o continente! Esperemos que este exemplo não seja seguido em mais lugar algum.
Numa entrevista radifónica anterior à invasão norte-americana do Iraque, David Barsamian perguntou a Noam Chomsky o que poderiam fazer simples cidadãos norte-americanos para impedir a guerra. Chomsky respondeu: "Em alguns lugares do mundo, as pessoas nunca prguntam: ‘O que podemos fazer’. Fazem-no, simplesmente”
Para alguém que nasceu e cresceu num campo de refugiados em Gaza, a resposta aparentemente complexa de Chomsky não exigia mais explicação.
Quando os gazanos recentemente derrubaram a fronteira selada da Faixa com o Egipto, o comentário de Chomsky voltou-me ao espírito, juntamente com recordações do passado ainda relevante – e pesado.
Em 1989, o campo de refugiados de Bureej vivia um rigoroso recolher obrigatório, como castigo pela morte de um soldado israelita. O carro do soldado tinha avariado em frente do campo quando regressava a casa, num colonato judaico. Bureej tinha anteriormente perdido centenas dos seus habitantes às mãos do exército israelita e matar um soldado era um acto de retaliação sem nada de surpreendente.
Nas semanas que se seguiram, muitos palestinianos de Bureej foram assassinados e centenas de casas foram demolidas. A matança obteve escassa cobertura mediática em Israel.
Eu vivia então com a minha família num campo de refugiados adjacente, Nuseirat. Caracterizado por uma pobreza extrema, ele era o berço natural de muito do movimento de resistência palestiniano. A nossa casa localizava-se a poucos metros do que era conhecido como “Cemitério dos Mártires”. Era numa área elevada, que as crianças do sítio usavam para observar o movimento de tanques israelitas, quando eles começavam a sua incursão de todos os dias no campo. Assobiávamos ou gritávamos sempre que víamos os soldados, e usávamos a linguagem dos sinais para comunicar quando nos escondíamos atrás de simples campas.
Embora a observação, os gritos e assobios fossem os únicos meios de resposta à nossa disposição, eles estavam longe de ser meios seguros. Os meus amigos Ala, Raed, Wael e outros foram mortos nestes recontros diários.
Durante o mais mortífero recolher obrigatório de Bureej, o som das explosões vindas desse campo condenado chegava até nós em Nuseirat. As pessoas do meu campo envolveram-se em discussões intermináveis, que não eram teóricas nem de facção. Havia pessoas a serem brutalmente assassinadas, feridas ou despojadas dos seus haveres, ao mesmo tempo que a Cruz Vermelha era impedida de aceder ao campo. Era preciso fazer alguma coisa.
E subitamente fez-se. Não como resultado de uma polémica realizada por intelectuais do campo ou de “apelos à acção” lançados por conferências, e sim por uma acção não estruturada, improvisada, levada a cabo por umas quantas mulheres do meu campo de refugiados. Elas puseram-se simplesmente em marcha a caminho de Bureej e rapidamente se lhes juntaram outras mulheres, crianças e homens. Dentro de uma hora, milhares de refugiados se puseram a caminho do campo vizinho cercado. “Qual é a pior coisa que eles podem fazer?”, perguntou um vizinho, tentando ganhar coragem antes de se juntar à marcha. “Os soldados não conseguirão matar mais de umas centenas antes de os submergirmos”.
Os soldados israelitas ficaram atónitos perante a multidão que cantava. Muitos manifestantes foram feridos e apenas um foi morto. Os soldados acabaram por voltar às suas posições. Veículos da ONU e ambulâncias da Cruz Vermelha protegeram-se no meio da multidão e, com ela, quebraram o cerco.
Ainda me lembro da cena dos habitantes de Bureej a abrirem pela primeira vez os batentes das suas janelas, entreabrindo depois as suas portas, saindo de suas casas num estado de cepticismo que depois irrompia em alegria. A minha recordação das canções, das lágrimas, dos mortos a serem trazidos para a sepultura, dos feridos a apertarem as mãos dos que tinham vindo salvá-los, dos forasteiros partilhando comida votos de felicidade, essa recordação reafirma o acontecimento como uma das maiores acções de solidariedade humana a que assisti.
A cena havia de repetir-se várias vezes durante a primeira e a segunda Intifada: pessoas comuns levando a cabo o que parecia ser uma resposta comum a uma injustiça extraordinária.
O pai que perdeu o seu filho para libertar Bureej disse à multidão: “Estou feliz por o meu filho ter morrido para tantos poderem viver”.
Mais tarde, nesse dia, outro campo de refugiados caíu sob um rigoroso recolher obrigatório, tomando o lugar do recente pesadelo de Bureej. Nem nos surpreendemos nem nos lamentámos. Tínhamos encontrado a coisa certa para fazer e “simplesmente fizemo-la”.
Agora mulheres palestinianas, mais uma vez, conduziram a sociedade civil palestiniana da forma mais significativa e gratificante. Precisamente quando o ministro da Defesa Ehud Barak estava a ser felicitado pelo seu êxito em submeter os palestinianos de Gaza pela fome, mulheres comuns conduziram uma marcha para romper o rigoroso cerco imposto a Gaza.
Na terça-feira, 22 de Janeiro, elas foram à fronteira Gaza-Egipto e o que se seguiu foi um momento de orgulho e de vergonha: orgulho para aquelas pessoas sempre dignas que recusam render-se, e vergonha para a chamada comunidade internacional que permitiu a humilhação de um povo inteiro até ao ponto de mães de família esfomeadas terem de enfrentar bastões, gás lacrimogéneo e polícia militar para obterem o direito elementar de comprarem comida, leite e medicamentos.
No dia seguinte, a coragem destas mulheres inspirou a mesma audácia que o punhado de mulheres do meu campo de refugiados. Cerca de metade da população da Faixa de Gaza atravessou a fronteira num movimento colectivo pela mera sobrevivência. E, quando um povo marcha em uníssono, não há força no mundo que por muito mortífera que seja, a poder barrar-lhe o caminho.
Esta “maior evasão da História”, como a descreveu um comentador, ficará gravada na memória dos palestinianos e do mundo durante anos. Em alguns círculos, ela será interminavelmente analisada, mas para os palestinianos de Gaza, ela está para além da racionalização: tinha, simplesmente, de ser feita.
Exércitos podem ser derrotados mas o espírito humano não pode ser submetido. O acto de coragem colectiva de Gaza é um dos maiores actos de desobediência civil dos nossos tempos, a par das marchas pelos direitos civis na América dos anos 60, da luta anti-Apartheid na África do Sul e mais recentemente das manifestações na Birmânia.
O povo palestiniano teve êxito onde a política e milhares de apelos internacionais tinham falhado. Ele tomou o assunto nas suas mãos e conseguiu impor-se. Embora isto não possa considerar-se o fim do sofrimento de Gaza, é um lembrete do que o poder do povo paa agir é simplesmente demasiado grande para ser ignorado.
O Grande Mufti de Jerusalém denunciou a decisão anunciada domingo pelas autoridades israelitas de destruir a mesquita Al-Omari na aldeia de Umm Tuba, perto de Jerusalém. A razão invocada é que essa mesquita, construída há mais de 700 anos, “não teria obtido licença de construção”!
A mesquita, restaurada em 1963, é a única mesquita de Umm Tuba e o sheikh Muhammad Hussein sublinha que “Israel tenta fazer desaparecer todos os locais islâmicos da Palestina, violando todos os valores religiosos e tratados internacionais”.
O Grande Mufti de Jerusalém apelou à UNESCO, encarregada de cuidar da herança humana e cultural no mundo, e pediu igualmente a outras organizações internacionais que impessam a destruição desta mesquita.
Um cineasta árabe tem de declarar que respeita o uniforme do exército israelita para continuar a trabalhar como leitor do Sapir College, decidiu o presidente da instituição, Prof. Ze'ev Tzahor.
Nizar Hassan
A decisão refere-se a um incidente de Novembro, quando um estudante se apresentou fardado na aula de Nizar Hassan, no final do seu serviço anual de reservista. Hassan pediu ao estudante, Eyal Cohen, que saísse e, quando Cohen recusou, proibiu-lhe que falasse no resto da aula (…)
O incidente suscitou um clamor e Tzahor ordenou que se fizesse um inquérito disciplinar. Na semana passada, o comité disciplinar, composto por outros leitores da escola, publicou a sua conclusão: que o comportamento de Hassan “merecia a mais severa condenação" e que ele devia ser obrigado a pedir desculpa a Cohen. Embora um leitor tenha todo o direito de expressar os seus pontos de vista políticos, afirmou o comité, não tem o direito de tentar impô-los aos seus estudantes.
Tzahor enviou estas conclusões a Hassan, mas acrescentou que ao apresentar as suas desculpas o leitor teria de "tratar do respeito pelo uniforme do exército israelita e do direito absoluto de qualquer estudante a entrar na sua aula fardado". E acrescentou que não aceitaria desculpas que não preenchessem este requisito.
O advogado de Hassan, Eti Livni, escreveu nesta semana a Tzahor e pediu-lhe que retirasse a sua exigência, considerando-a "humilhante, racista e discriminatória" e acusando-o de ter "cedido a uma forte pressão política", inclusivé do exército.
Além disso, um grupo de estudantes de Sapir tenciona manifestar-se na 4ª feira contra a a decisão de Tzahor, afirmando que nenhum outro leitor foi obrigado a declarar que respeita o uniforme do exército israelita. Uns 20 estudantes assinaram uma carta afirmando que sairão da escola se Hassan for despedido.
Pareceu a queda do muro de Berlim. Não ‘pareceu', apenas. Por um momento, o cruzamento em Rafah foi o Portão de Brandenburgo. É impossível não se emocionar quando a multidão de oprimidos e famintos rompe um muro que os impede de avançar, olhos brilhantes, todos a abraçar-se -, emocionar-se muito, mesmo que se saiba que foi o nosso governo, o governo de Israel, que construiu aquele muro.
A Faixa de Gaza é a maior prisão da Terra. Abrir uma passagem no muro, em Rafah, foi um acto de libertação. Provou-se que políticas desumanas são sempre políticas de estupidez: nenhum poder conseguirá jamais conter uma multidão que já tenha cruzado a fronteira do desespero absoluto.
Esta é a lição de Gaza, Janeiro, 2008.
CABERIA AQUI a frase famosa do estadista francês, do tempo de Napoleão I, Boulay de la Meurthe[1][1], com pequena adaptação: "É pior que crime de guerra: é uma estupidez!"
Há vários meses, os dois Ehuds - Barak e Olmert - impuseram um bloqueio à Faixa de Gaza e vangloriaram-se muito. Depois, foram apertando o nó mortal cada vez mais, até que já praticamente nada entrava na Faixa. Na semana passada tornaram absoluto o bloqueio - nem comida, nem remédios. As coisas chegaram ao paroxismo quando suspenderam também o fornecimento de combustíveis. Grandes áreas de Gaza ficaram sem electricidade - para as incubadoras para bebés prematuros, para máquinas de diálise, para bombas de água e para evacuar esgotos. Centenas de milhares de pessoas ficaram sem aquecimento, sob frio intenso, sem poder cozinhar, sem ter o que comer.
Vezes sem conta a Rede Al Jazeera levou aquelas imagens a milhões de lares em todo o mundo árabe. Muitas outras redes de televisão exibiram as mesmas imagens. De Casablanca a Amã, explodiram protestos de massa nas ruas que assustaram os regimes árabes autoritários. Hosny Mubarak telefonou em pânico para Ehud Barak. Na mesma noite, Barak foi obrigado a suspender, pelo menos temporariamente, o bloqueio que, desde a manhã, impedia a entrega de combustível na Faixa. Excepto por isto, o bloqueio continuou total.
Difícil imaginar ato político mais estúpido.
A RAZÃO apresentada para matar de fome e frio 1,5 milhão de seres humanos confinados num território de 365 km2 é o continuado bombardeio de foguetes Qassam sobre a cidade de Sderot e arredores.
É razão cuidadosamente pensada para unir o que há de mais primitivo e o que há de mais pobre na opinião pública em Israel. Faz calar as críticas que viriam da ONU e de governos em todo o mundo que, de outro modo, protestariam contra uma punição colectivamente aplicada a populações civis que, sem dúvida alguma, configura crime de guerra nos termos da lei internacional.
Apresenta-se ao mundo um quadro simplificado: o regime de terror do Hamas lança mísseis contra inocentes civis israelitas. Nenhum governo pode tolerar que os seus cidadãos sejam bombardeados dentro das suas fronteiras. O exército de Israel não tem resposta militar para enfrentar os foguetes Qassam. Portanto, não lhe resta outra saída senão pressionar a população de Gaza, na esperança de que se levante contra o Hamas e faça parar o bombardeio de Qassams.
No dia em que Gaza ficou totalmente sem electricidade, os correspondentes militares israelitas festejaram: só dois foguetes Qassams foram disparados de dentro da Faixa. Então o bloqueio funciona! Ehud Barak é um génio!
No dia seguinte, com 17 Qassams lançados contra Israel, a alegria desapareceu. Políticos e generais israelitas estavam (literalmente) frenéticos, fora de si: um político propôs "acções mais loucas que as deles"; outro propôs "bombardear a área urbana de Gaza indiscriminadamente, a cada Qassam disparado", um famoso professor (conhecido por ser ligeiramente perturbado) propôs que se adoptasse "o mal absoluto".
O modo de actuar do governo israelita é hoje uma repetição do que já fizeram na Segunda Guerra do Líbano (espera-se para os próximos dias a publicação do relatório sobre aqueles dias). Daquela vez: o Hezbollah capturou dois soldados israelitas, em território de Israel. Hoje: o Hamas bombardeia casas e cidades em território de Israel. Daquela vez: precipitadamente, o governo decidiu entrar em guerra. Hoje: precipitadamente, o governo decidiu impor bloqueio total. Daquela vez: o governo ordenou bombardeio massiço contra civis, para pressionar o Hezbollah. Hoje: o governo ordena o massacre, pela fome e pelo frio, de população civil, para pressionar o Hamas.
Os resultados são os mesmos, nos dois casos. Daquela vez: a população não se levantou contra o Hezbollah; aconteceu exactamente o contrário: pessoas de todos os credos e grupos religiosos reuniram-se numa mesma organização xiita. Hassan Nasrallah tornou-se herói de todo o mundo árabe. E hoje: a população cada vez mais unida num Hamas cada vez mais forte, acusa Mahmud Abbas de colaborar com o inimigo. Uma mãe que não tenha comida para dar aos filhos não maldiz Ismail Haniyeh. Maldiz Olmert, Abbas e Mubarak.
ENTÃO, o que fazer? Afinal de contas, não se pode tolerar o sofrimento dos habitantes de Sderot, que vivem sob fogo constante.
O que todos ocultam da opinião pública é que é possível fazer parar o bombardeio de Qassams amanhã de manhã.
Há vários meses, o Hamas propôs um cessar-fogo. Esta semana, eles repetiram a mesma proposta.
Para o Hamas, cessar-fogo significa: os palestinianos cessam o fogo de Qassams e morteiros; e o exército de Israel cessa as incursões em Gaza, os assassinatos por armas ‘inteligentes' em alvos ‘seleccionados' e o bloqueio.
Por que o governo israelita não aceita imediatamente esta proposta?
É simples: para aceitar esta proposta, o governo de Israel tem de falar com o Hamas, directa ou indirectamente. Isto, precisamente, é o que o governo de Israel se recusa a fazer.
Por quê? Outra vez, é muito simples: porque Sderot é apenas um pretexto - como também os dois soldados capturados foram apenas um pretexto - para coisa muito diferente. O objectivo geral de toda a ‘operação' é derrubar o regime do Hamas em Gaza e evitar que o Hamas tome toda a Cisjordânia.
Em palavras simples e claras: o governo de Israel está a sacrificar toda a população de Sderot, em nome de uma ideia condenada de antemão ao fracasso. O governo de Israel está muito mais interessado em pressionar o Hamas - que é, hoje, a cabeça de ponte de toda a resistência palestiniana - do que em proteger os habitantes de Sderot. E todos os média colaboram para difundir a farsa.
JÁ SE DISSE que é muito perigoso escrever sátiras em Israel - porque muitas vezes a sátira torna-se realidade. Alguns leitores talvez lembrem de um artigo satírico que escrevi há alguns meses. Lá, descrevi a situação em Gaza como uma experiência científica para descobrir até que ponto conseguiríamos chegar, em matéria de matar de fome populações civis e fazer da vida humana um inferno... antes de termos de levantar as mãos e nos render, derrotados.
Esta semana, a sátira virou política oficial do Estado de Israel. Comentaristas respeitados declararam explicitamente que Ehud Barak e os chefes militares estão a trabalhar na linha de "tentativa e erro" e mudam diariamente os seus métodos conforme os resultados. Param de fornecer combustível a Gaza, vêem o que acontece e desfazem tudo quando a reacção internacional é negativa demais. Suspendem o fornecimento de remédios, vêem o que acontece, etc. etc. O objectivo científico justifica os meios.
O homem encarregado deste experimento é o Ministro da Defesa, Ehud Barak, homem de muitas ideias e poucos escrúpulos, homem cujo modo de raciocinar é basicamente pré-humano. Ehud Barak é hoje, provavelmente, o ser mais perigoso que há em Israel, mais perigoso que Ehud Olmert e Benjamin Netanyahu, perigoso até para a sobrevivência de Israel no longo prazo.
O homem encarregado de executar a experiência é o comandante em chefe do Exército de Israel. Esta semana, ouvimos os discursos de dois de seus predecessores no cargo, os generais Moshe Ya'alon e Shaul Mofaz, num fórum que teve as mais altas pretensões intelectuais. Descobriu-se ali que ambos têm ideias que os colocam nalgum ponto entre a extrema-direita e a ultra-direita. São, os dois, homens de cabeça assustadoramente primitiva. Desnecessário desperdiçar sequer uma palavra sobre as qualidades morais e intelectuais do sucessor imediato de ambos, Dan Halutz. Se estas são as vozes dos três últimos comandantes do Exército de Israel, o que dizer do actual, que não pode falar abertamente como os outros? Que maçã cairia muito longe da mesma árvore?
Até há três dias, os generais ainda podiam defender a opinião de que a experiência estaria a dar certo. A miséria atingira o clímax na Faixa de Gaza. Centenas de milhares de seres humanos enfrentavam a fome total. O chefe da Agência de Apoio Humanitário da ONU para a Palestina (UNRWA) denunciou o risco de catástrofe humana absoluta. Só os mais ricos ainda tinham combustível para os seus carros, para aquecer as residências e para cozinhar. O mundo não parou de girar e ouviu-se apenas um murmúrio planetário. Os líderes dos Estados árabes enunciaram frases ocas e não moveram um dedo.
Barak, que tem talentos matemáticos, podia até calcular o dia em que a população finalmente entraria em colapso.
E ENTÃO, de repente, aconteceu algo que nenhum deles previu, embora fosse o evento mais facilmente previsível do planeta.
Quando alguém põe 1,5 milhão de seres humanos numa panela de pressão e não pára de pôr fogo no palheiro, é certo que tudo explodirá. Foi o que aconteceu na fronteira entre Gaza e o Egipto.
Primeiro, foi uma explosão pequena. Uma multidão juntou-se no posto de fronteira e os policiais egípcios abriram fogo. Houve dúzias de feridos. Foi um sinal de alerta.
No dia seguinte veio o grande assalto. Combatentes palestinianos furaram o muro em vários pontos. Centenas de milhares de palestinianos entraram em território egípcio e respiraram fundo. Estava rompido o bloqueio.
Já antes disto, a posição de Mubarak era insustentável. Centenas de milhões de árabes, mil milhões de muçulmanos viram que o exército de Israel fechava apenas três pontos da fronteira de Gaza: pelo norte, pelo leste e pelo mar. O quarto ponto do bloqueio estava entregue ao exército egípcio.
O presidente do Egipto, que se apresenta como líder de todo o mundo árabe, foi exposto como colaborador numa operação desumana liderada por um inimigo, e apenas para obter os favores (e o dinheiro) dos norte-americanos. Os seus inimigos internos, a Irmandade Muçulmana, exploraram esta situação e o denunciaram, publicamente, aos olhos de seu próprio povo.
Dificilmente Mubarak teria podido manter-se na posição em que estava. Mas a multidão palestiniana livrou-o da tarefa de decidir. Decidiram por ele. Os palestinianos irromperam no Egipto como um tsunami. Agora, Mubarak que decida quando sucumbirá completamente a Israel e reimporá o bloqueio contra os seus irmãos árabes.
E quanto à experiência de Barak? O que vai acontecer agora? Barak tem poucas opções:
(a) Reocupar Gaza. O exército não gosta desta ideia. Para os comandantes militares, a reocupação exporá milhares de soldados israelitas a uma guerra de guerrilhas cruel, diferente de todas as intifadas conhecidas.
(b) Apertar novamente o bloqueio e pressionar Mubarak o mais possível, inclusive com o lóbi israelita no Congresso dos EUA, para privá-lo dos milhares de milhões que recebe anualmente em troca de serviços prestados.
(c) Fazer do castigo um prémio, e entregar a Faixa de Gaza a Mubarak, como se este fosse o objectivo secreto de Barak, desde o começo. Passaria a ser tarefa do Egipto garantir a segurança de Israel, evitar a chuva de Qassams e expor os seus próprios soldados à guerra de guerrilhas na Palestina - depois de o Egipto ter imaginado que se havia livrado definitivamente desta área de conflito, e depois de toda a infra-estrutura da Palestina ter sido destruída pela ocupação israelita. É provável que Mubarak responda: "É muita gentileza sua, mas, não, não, muito obrigado."
O bloqueio da Faixa de Gaza é crime de guerra. E é pior que isto: é uma estupidez brutal
* Uri Avnery, 85 anos, é membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelita). Em adolescente, Avnery foi combatente no Irgun e mais tarde soldado no exército israelita. Foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Foi o primeiro israelita a estabelecer contacto com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974. Foi durante 40 anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelita da Palestina, incluindo My Friend, the Enemy (Meu amigo, o inimigo) e Two People, Two States (Dois povos, dois Estados).
Fonte: Worse than a Crime, publicado em 25/1/2008 em Gush Shalom ["Grupo da Paz"], em . Tradução de Caia Fittipaldi para o Blog do Bourdoukan. Adaptação para www.esquerda.net por Luís Leiria