Sei que você e eu estamos impacientes por ver a paz no Médio Oriente, mas antes de você continuar a falar das condições indispensáveis do ponto de vista israelita, quero que saiba o que penso. Por onde começar? Digamos, por 1964.
Permita-me que cite as minhas próprias palavras aquando do meu julgamento. Elas são tão acertadas agora como eram naquele tempo: "Combati a dominação branca e combati a dominação negra. Acarinhei o ideal de uma sociedade democrática e livre em que todos pudessem viver em conjunto, em harmonia e com iguais oportunidades. É um ideal que espero viver e que espero atingir. Mas, se for preciso, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer".
Hoje, o mundo, negro e branco, reconhece que o apartheid não tem futuro. Na África do Sul, ele acabou graças à nossa própria acção de massas decisiva, para construir a paz e a segurança. Esta campanha massiva de desobediência e doutras acções só podia conduzir ao estabelecimento da democracia.
Talvez a si lhe pareça estranho identificar a situação na Palestina ou, mais especificamente, a estrutura das relações políticas e culturais entre palestinianos e israelitas, como um sistema de apartheid. O seu recente artigo "Bush’s First Memo", no New York Times de 27 de Março de 2001, demonstra-o.
Você parece surpreendido por ouvir dizer que ainda há problemas por resolver de 1948, o mais importante dos quais é o do direito de regresso dos refugiados palestinianos. O conflito israelo-palestiniano não é só um problema de ocupação militar e Israel não é um país que tenha sido criado "normalmente" e se tenha lembrado de ocupar outro país em 1967. Os palestinianos não lutam por um "Estado" e sim pela liberdade e a igualdade, exactamente como nós lutámos pela liberdade na África do Sul.
No decurso dos últimos anos, e em especial desde que o Partido Trabalhista foi para o governo, Israel mostrou que não tinha sequer a intenção de devolver o que ocupou em 1967, que os colonatos vão permanecer, que Jersualém ficaria sob soberania exclusivamente israelita e que os palestinianos não teriam nenhum Estado independente, antes seriam colocados sob a dependência económica de Israel, com controlo israelita sobre as fronteiras, sobre a terra, sobre o ar, a água e o mar.
Israel não pensava num "Estado" e sim numa "separação". O valor da separação mede-se em termos da capacidade de Israel para manter judeu um Estado judeu e de não ter uma minoria palestiniana que pudesse no futuro transformar-se em maioria. Se isso acontecesse, obrigaria Israel a tornar-se ou um Estado laico e bi-nacional ou a tornar-se um Estado de apartheid, não só de facto, mas também de direito.
Thomas, se você prestar atenção às sondagens israelitas ao longo dos últimos 30 a 40 anos, vai ver claramente um racismo grosseiro, com um terço da população a declarar-se abertamente racista. Este racismo é do tipo "Odeio os árabes" e "quero que os árabes morram". Se vo´cê também prestar atenção ao sistema judicial israelita, vai ver que há discriminação contra os palestinianos, e se considerar especialmente os territórios ocupados em 1967 vai ver que há dois sistemas judiciais em acção, que representam duas abordagens diferentes da vida humana: uma para a vida palestiniana, ou para a vida judia.
Além disso, há duas atitudes diferentes sobre a propriedade e sobre a terra. A propriedade palestiniana não é reconhecida como propriedade privada, porque pode ser confiscada.
Para a ocupação israelita da Cisjordânia e de Gaza, há um factor suplementar a tomar em conta. As chamadas "Zonas autónomas palestinianas" são bantustões. São entidades restritas no seio da estrutura de poder do sistema israelita de apartheid.
O Estado palestiniano não pode ser um sub-produto do Estado judeu, só para conservar a pureza judaica de Israel . A discriminação racial de Israel é a vida quotidiana dos palestinianos, porque Israel é um Estado judeu, os judeus israelitas têm direitos especiais de que os não-judeus não beneficiam. Os árabes palestinianos não têm lugar no Estado "judeu".
O apartheid é um crime contra a humanidade. Israel privou milhões de palestinianos da sua liberdade e da sua propriedade. Ele perpetura um sistema de discriminação racial e de desigualdade. Encarcerou e torturou sistematicamente milhares de palestininaos, em violação do direito internacional. Desencadeou uma guerra contra a população civil e em especial contra as crianças. As respostas da África do Sul em matéria de violação dos direitos humanos provenientes das políticas de deportação e das políticas de apartheid fizeram luz sobre o que a sociedade israelita deve necessariamente levar a cabo para que se possa falar duma paz justa e duradoura no Médio Oriente e do fim da política de apartheid. Thomas, eu não abaondono a diplomacia do Médio Oriente, mas não serei condescendente consigo como o são os seus apoiantes. Se você quer a paz e a democracia, apoiá-lo-ei. Se quer formalizar o apartheid, não o apoiarei. Se quer apoiar a discriminação racial e a limpeza étnica, conte com a nossa oposição. Quando tiver decidido, dê-me um telefonema.
Anunciámos em Dezembro último a recusa do poeta Aharon Shabtai a participar no próximo Salão do Livro, que vai realizar-se em Paris de 14 a 19 de Março próximos, e que escolheu Israel como "convidado de honra", por ocasião do "60ª aniversário da sua existência". Esta operação de propaganda a favor dum país que multiplica os seus crimes de guerra, que condena todo um povo à fome e que o martiriza desde há décadas, suscita uma emoção aparentemente mais forte em Itália, em que a mesma operação está programada para a Primavera em Turim. O boicote organiza-se e várias personalidades de renome internacional explicam a sua necessidade. Segue-se a posição do escritor britânico Tariq Ali.
Por que não vou participar na Feira do Livro de Turim
Por Tariq Ali
Quando dei o meu acordo para participar na Feira do Livro de Turim, coisa que já tinha feito no passado, não imaginava que o "convidado de honra" seria Israel no seu 60º aniversário. Mas esse é também o 60º aniversário daquilo que os palestinianos designam como a « Nakba », a catástrofe, que lhes caiu em cima quando foram expulsos das suas aldeias, muitos deles foram mortos e muitas mulheres foram violadas por colonos. Tudo factos que já ninguém se atreve a contestar.
Por que é que a Feira do Livro de Turim não convida 30 escritores israelitas e 30 escritores palestinianos - ( e garanto-vos que eles existem e que são grandes poetas e grandes romancistas) ? Isso seria compreendido como um gesto positivo e pacífico, e aí poderia ter lugar um debate positivo, um pouco como uma versão literária do « Diwan » (a orquestra) de Daniel Barenboim, meio israelita, meio palestiniano.
Um gesto deste tipo teria reaproximado os povos. Mas não, os comissários culturais acham são mais espertos. Sucedeu-me noutras ocasiões discutir duramente com escritores israelitas que visitavam a feira e tê-lo-ia feito mais uma vez com prazer se as condições fossem outras.
O que decidiram fazer é uma infame provocação.
Nota-se que a cultura está cada vez mais ligadaa às prioridades políticas da rede Estados Unidos/União Europeia. O ocidente está cego aos sofrimentos dos palestinianos. A guerra israelita contra o Líbano, os relatos que chegam diaraimente do ghetto de Gaza, não comovem a Europa dos funcionários. Em França, como sabemos, é praticamente impossível criticar Israel. Na Alemanha também, por razões especiais. Seria uma tristeza que a Itália tomasse o mesmo caminho. Quantas vezes já sublinhámos que nada tem de anti-semita criticar a política colonial de Israel!
Aceitá-lo significaria tornarno-nos vítimas voluntárias da chantagem que o establishment israelita utiliza para reduzir ao silêncio os seus críticos. Há corajosos críticos israelitas como Aharon Shabtai, Amira Hass, Yitzhak Laor e outros, que não permitirão que as suas vozes sejam silenciadas desse modo. Shabtai recusou assistir a esta Feira.
Como poderia eu porceder doutro modo?
Uma coisa é apoiar o direito de Israel a existir, coisa que faço e sempre fiz. Mas daí a extrapolar que este direito à existência equivalha a um cheque em branco para Israel fazer o que quer aos que pretende expulsar e que trata como sub-humanos, isso é inaceitável.
Pessoalmente sou a favor de um só Estado Israel/Palestina em que todos os cidadãos sejam iguais. Dir-me-ão que se trata duma utopia Talvez, mas a longo prazo é a única solução. Devido aos temas dos meus romances, perguntaram-me muitas vezes (e mais recentemente em Madison, no Wisconsin) se seria possível recriar a época melhor, a de Al-Andalus e Sicília (NdT : (Al-Andalus : o conjunto das terras da Península Ibérica sob dominação muçulmana na Idade Média) quando três culturas coexistiram longamente. A minha resposta é sempre a mesma: o único lugar em que seria possível recriá-lo seria Israel/Palestina.
Vivemos no mundo dos dois pesos e duas medidas, mas não somos obrigados a aceitá-lo. Vemos por vezes casos de indivíduos ou de grupos a quem foi feito mal e que por sua vez o fazem a outros. Mas isto não justifica aquilo. Foi o anti-semitismo europeu que tolerou o judeocídio na Segunda Guerra Mundial e agora foram os palestinianos que se tornaram vítimas dele. Alguns israelitas são conscientes disso, mas preferem pensar noutra coisa. Muitos europeus encaram hoje os palestinianos e os muçulmanos como se encarava os judeus no passado. Ironia visível nos comentários da imprensa e nas reportagens da televisão. Em praticamente todos os países europeus. Que pena que a Feira do Livro de Turim tenha decidido apoiar os novos preconceitos que assolam o continente! Esperemos que este exemplo não seja seguido em mais lugar algum.