Uma representação do Comité de Solidariedade com a Palestina fez no dia 15 de Julho a entrega de 800 assinaturas a favor da geminação entre Gaza e Lisboa. A lista inclui nomes como os escritores José Saramago e Eduarda Dionísio, os cientistas Pedro Gil Ferreira e João Magueijo, e ainda vários deputados, sindicalistas e dirigentes associativos.
O presidente da CML, António Costa, delegou no seu chefe de gabinete, Manuel Seabra, para receber as assinaturas. A abstenção do PS na Assembleia Municipal perante uma moção a favor da geminação entre as duas cidades permitiu que a direita derrotasse essa moção. Votaram vencidos o BE, o PCP e os eleitos do grupo "Cidadãos por Lisboa". Ao permitir a recusa da moção, o PS mostrou que não se deve esperar agora do presidente da CML qualquer abertura para a proposta subscrita pelos 800 cidadãos.
Lisboa continuará a ser uma cidade sectariamente empenhada na guerra de Israel contra a nação palestiniana. Prova-o o seu monumento às vítimas do massacre de 1506, uma causa justa, mas manipulada para a sua evocação coincidir com o 60º aniversário do Estado de Israel e não com o massacre, cujo quinto centenário na realidade se comemorou há dois anos.
Sob esse aspecto Lisboa não vira apenas as costas aos povos árabes e de maioria muçulmana em todo o mundo, não vira a apenas as costas à sua própria comunidade imigrante de credo muçulmano, mas também às cidades europeias como Barcelona, Cascais, Sevilha e Turim que decidiram geminar-se com Gaza.
O artigo de Esther Mucznik no “Público” de 8 de Maio de 2008 apresenta algumas contradições gritantes de que a autora parece não se ter apercebido.
Por um lado, ela cultiva o mito de uma nação judaica que viria de tempos imemoriais e que teria sobrevivido como nação ao longo de uma Diáspora milenar. Como esta versão é muito difícil de manter, admite que a grande maioria dos judeus alimentou, na sequência da revolução francesa e da sua emancipação política, o desejo de ser assimilada e de fazer parte doutros povos. Mas esse desejo, logo acrescenta Mucznik, não passava de uma “doce ilusão emancipadora”. E a explosão dos pogroms no Leste da Europa rapidamente terá ocasionado um surto do movimento sionista (espantoso como Mucznik apenas recorda os brutais pogroms russos e não a “civilizada” perseguição francesa contra Dreyfus).
Acontece que Mucznik não tem razão. Embora o sionismo tenha efectivamente sido concebido por Theodor Herzl no século XIX, ele era nesse tempo inteiramente marginal e nada atraente para os judeus. A “doce ilusão emancipadora” continuava, apesar das criminosas violências anti-semitas, a embalar uma grande parte dos judeus da Europa. Outros, despertados dessa “doce ilusão” procuravam construir um futuro em paragens distantes – principalmente no Novo Mundo, pouquíssimos na Palestina. Os sionistas, de direita ou de esquerda, continuavam a ser uma minoria ínfima entre os judeus.
Isso mesmo acaba, aliás, por admitir Mucznik, sem grande coerência, ao afirmar que “foi o genocídio nazi um dos principais instrumentos da criação do Estado de Israel”. E, com efeito, a grande oportunidade do movimento sionista surgiu no pós-guerra, quando aos sobreviventes do Holcausto pareciam fechar-se as portas de até então: assimilação nos seus países ou acolhimento nas Américas. Mas continuava a não existir uma nação judaica. E também isso admite Mucznik, sem se dar conta, ao falar-nos na “errância desesperada de mais de cem mil sobreviventes desenraizados cuja única esperança era fugir da Europa e das suas sombras”. Notemos bem as palavras da “investigadora em assuntos judaicos”: os sobreviventes não queriam partir para a Palestina e sim “fugir da Europa”.
E, como continuavam a não ser uma nação, tiveram de ser metidos no molde do Estado israelita para daí sair essa nação. E Mucznik, para fazer a propaganda do Estado, volta a descair-se com a admissão de que foi ele a “cometer a proeza de forjar uma identidade própria forte”.
Dos miríficos inimigos que espreitam esse “Estado de direito exemplar”, Mucznik apenas se refere especificamente ao Irão, um país onde continua a existir legalmente e com representação parlamentar uma significativa comunidade judaica. Classifica-o no entanto como uma espécie de regime nazi, através da referência a Mahmud Amadinedjad como o “pequeno Führer persa”. Devemos portanto esperar que o embaixador iraniano em Lisboa seja em breve visitado e calorosamente cumprimentado por Mucznik como o embaixador nazi o era nos anos 30 pelo antecessor de Mucznik, também dirigente da Comunidade Israelita de Lisboa, Moses Amzalak ...
Enfim, um pequeno esquecimento: ocupada a cultivar o mito do povo eleito, e a meter os pés pelas mãos cada vez que faz baixar esse mito à terra das realidades históricas, Mucznik esquece muito simplesmente a existência do povo palestiniano, como referiu Alan Stoleroff. Regressamos assim à fraudulenta propaganda sobre uma “terra sem povo” (a Palestina). O povo palestiniano, que Mucznik até agora só encarava como detalhe da História, deixa mesmo de ter direito a qualquer nota de rodapé. Deixou de existir na propaganda da “investigadora”.
Se não fosse um assunto e realidade tão sérios, a peça de Esther Mucznik dada à estampa no Público (8 Maio 2008) seria cómica pela sua enorme falsidade, pela hipocrisia e pelas suas omissões fantásticas. É terrível o peso de má fé e do egoísmo nacional.
Em todo o seu elogio do novo Estado sionista não há uma única referência aos Palestinianos (ou aos Árabes israelitas discriminados no seu país) ou à ocupação desse povo na Cisjordânia ou ao cerco de Gaza! Que omissão típica dos defensores do Sionismo! Nisso, Esther reproduz o silêncio colonialista de quase todos os mais importantes ideólogos sionistas históricos com a excepção de Achad Haam e Martin Buber - embora Ben-Gurion também tenha referido os “Árabes” mas enquanto “problema para resolver”.
Acho mesmo triste este mau serviço que Mucznik presta ao seu povo neste aniversário do Estado de Israel perante o público português que, desde há 500 anos, não conhece bem a comunidade judaica. Acho ainda mais triste, porque reconheço claramente os temas que ela refere nos primeiros parágrafos da peça. Mas mesmo assim, embora conheça tão bem a educação nacional e religiosa, e embora tenha internalizado tão bem o trauma do Holocausto, não aceito que ela nos condenasse ao mesmo particularismo exclusionista que caracteriza a maior parte, senão todas as outras nações do mundo.
Mucznik cai no mesmo erro trágico que nega – do meu ponto de vista – todo o sentido da nossa história de 2000 anos de Diáspora. Não vou entrar numa diatribe quanto à interpretação religiosa e moral implicada pela minha crítica, mas se for necessário posso sentar-me e discutir teologia com rabinos ou outros “investigadores de assuntos judaicos”, e posso representar para o público português o outro Judeu, tão legítimo, senão mais, do que o Sionista que Esther representa.
Se somos uma nação diferente das outras, se a nossa história de perseguição tem qualquer “sentido”, é porque somos (ou deveríamos ser) o povo universal, de uma moralidade universal - já implícita nos Mandamentos, e cujo sofrimento como povo, como colectivo, nos deveria obrigar a actuar de forma consistentemente diferente, de forma justa. Esther representa-nos apenas como uma tribo lutando com as outras tribos numa qualquer região do mundo pela terra e pela água (aliás somos um tribo que, ao ser Estado na antiguidade, se envolveu em guerra civil, levando à nossa própria destruição!). Assim, não seríamos sujeito a uma moralidade diferente de qualquer outra tribo que vive numa guerra de todos contra todos. Se for assim, Esther, mereceríamos as respostas violentas das outras tribos que só estão a defender a sua terra e a sua água, e, assim, “a força faz razão”.
Na realidade, Esther, apesar da má consciência, que às vezes exprimes aqui em público no Público, és pouco mais que uma ideóloga ao serviço de qualquer governo de Israel que esteja no poder, e não uma porta-voz de uma comunidade judaica, pelo menos não de uma comunidade com que eu me possa identificar.
É terrível a cegueira do egoísmo nacional. É tão emancipadora a visão judaica universalista - mas o seu peso e os seus deveres não são mais ligeiros. Se há grandeza na nossa história, ela deriva não do nosso fechamento mas da nossa abertura.
Assim, “não furtarás”: se quisermos viver em Israel, temos de resolver a questão da terra e reconhecer que os Palestinianos ficaram com apenas 22% da sua terra original antes do nosso regresso.
Assim, “não matarás”: se quisermos viver em Israel, temos de fazer tudo para que o povo palestiniano possa viver igualmente bem e não no apartheid e em guetos. “Não cobiçarás a casa do teu próximo, … nem qualquer coisa que pertença ao teu próximo...” Eu não vou celebrar hoje enquanto, “em meu nome”, correligionários meus estão a expropriar – e a destruir – a casa dos nossos mais próximos. E não aceito os “falsos testemunhos” de Esther Mucznik, nem hoje, nem noutro dia.
Mais uma vez celebrámos o feriado da liberdade com Gilad Shalit no cativeiro. Falámos de passar da escuridão para uma luz brilhante, mas deixámos no escuro as conversações sobre a libertação dos soldados raptados. Habituámo-nos a deixar o futuro depender do Shin Bet [serviços secretos israelitas], que negoceiam secretamente, e deixámos de perguntar o que poderíamos fazer para obter a libertação dos soldados raptados.
Porque não falar com os nossos vizinhos, com o Hamas, a Fatah e o Hezbollah, com os presidentes da Síria, do Egipto e dos países árabes, sobre a libertação dos raptados, sobre o fim do fogo dos Qassams, sobre a reconciliação?
Gabamo-nos de ter em Israel uma democracia e liberdade de informação, mas deixamos o Shin Bet dirigir a nossa vida, embora actue no escuro. Não temos a menor ideia do nosso mapa futuro, mas durante anos pediram-nos que não fizéssemos demasiadas perguntas.
Desde 1967, Israel deteve mais de 700.000 Palestinianos, cerca de um quinto da população palestiniana. Segundo o último relatório da ONU, Israel conserva atrás das grades mais de 11.000 prisioneiros palestinianos, incluindo 118 mulheres e 376 crianças, que estão encarcerados – violando a lei internacional – fora dos territórios ocupados. O Shin Bet decide quais prisioneiros podem receber visitas equais dos seus parentes são impedidos de entrar em Israel.
Poderíamos começar por libertar, como gesto de boa vontade, alguns dos 800 prisioneiros “administrativos” palestinianos, que têm estado presos em Israel sem julgamento. Estes prisioneiros, que não foram acusados e não sabem porque estão detidos sem julgamento desde há meses (por vezes anos), têm de ser libertados como primeiro passo para a libertação dos raptados e presos políticos. Libertar prisioneiros pode ser o primeiro passo de um processo de reconciliação, como tem sido em muitos outros países do mundo.
Processos de reconciliação em qualquer parte do mundo não são conduzidos na sombra, e sim à luz do dia. Eles incluem um debate público sobre os testemunhos das vítimas e público reconhecimento da dor, dos direitos e dos compromissos feitos por todas as partes envolvidas. Umas 22.000 pessoas testemunharam perante a a Comissão Verdade e Reconciliação da África do Sul, e milhões viram e ouviram esses depoimentos na televisão. Testemunhar perante os comités tornou possível para as vítimas contarem a sua história e obter reconhecimento, tornou possível para muitos sul-africanos ouvir falar pela primeira vez sobre o significado da opressão no regime do apartheid e deu à sociedade a oportunidade de lidar com a dor do passado de modo a construir um futuro mais justo.
Em Israel as autoridades preferem conduzir conversações secretas e não ouvir a história dos palestinianos. Continuamos a contar a história do nosso regresso ao país dos nossos antepassados. Qual é a história dos palestinianos que viveram aqui, e a quem este país tamb+em pertence? Porque não queremos ouvir a história deles, sobre a deportação de centenas de milhares das suas casas em 1948, com a destruição das suas aldeias e o roubo da sua propriedade? Porque não havemos de ouvir falar do seu sonho de regresso às suas casas em Jaffa, Ramle e Lod? Da sua vida sob a ocupação, quando as suas universidades foram encerradas durante anos por ordem do governador militar? Porque não ouvimos falar das crianças a crescerem em casas apinhadas de gente durante meses de recolher obrigatório, de barreiras nas estradas e vedações, e parentes a serem espancados, humilhados e detidos, e duma vida sem direitos?
É tempo de falarmos com os palestinianos sobre a maneira de vivermos juntos no futuro. Não haverá realmente ninguém com quem falar? Porque é que não queremos falar com toda a gente sobre tudo, sobre o passado, o presente e o futuro?
Será possível que Gilad Shalit ainda esteja refém e o fogo dos Qassam continue não por não haver ninguém com quem falar, mas por não querermos ouvir o que os dirigentes palestinianos têm para dizer? Temos de falar em voz alta com toda a gente, sobre o passado, o presente e o futuro, sobre uma vida de relações justas e decentes de boa vizinhança. Sem linhas vermelhas nem verdes e sem pré-condições. Simplesmente sobre o modo como havemos de viver juntos e separados, árabes e judeus, em reconciliação.
* A autora é professora de direitos humanos na Faculdade de Direito Hebraica