O artigo de Esther Mucznik no “Público” de 8 de Maio de 2008 apresenta algumas contradições gritantes de que a autora parece não se ter apercebido.
Por um lado, ela cultiva o mito de uma nação judaica que viria de tempos imemoriais e que teria sobrevivido como nação ao longo de uma Diáspora milenar. Como esta versão é muito difícil de manter, admite que a grande maioria dos judeus alimentou, na sequência da revolução francesa e da sua emancipação política, o desejo de ser assimilada e de fazer parte doutros povos. Mas esse desejo, logo acrescenta Mucznik, não passava de uma “doce ilusão emancipadora”. E a explosão dos pogroms no Leste da Europa rapidamente terá ocasionado um surto do movimento sionista (espantoso como Mucznik apenas recorda os brutais pogroms russos e não a “civilizada” perseguição francesa contra Dreyfus).
Acontece que Mucznik não tem razão. Embora o sionismo tenha efectivamente sido concebido por Theodor Herzl no século XIX, ele era nesse tempo inteiramente marginal e nada atraente para os judeus. A “doce ilusão emancipadora” continuava, apesar das criminosas violências anti-semitas, a embalar uma grande parte dos judeus da Europa. Outros, despertados dessa “doce ilusão” procuravam construir um futuro em paragens distantes – principalmente no Novo Mundo, pouquíssimos na Palestina. Os sionistas, de direita ou de esquerda, continuavam a ser uma minoria ínfima entre os judeus.
Isso mesmo acaba, aliás, por admitir Mucznik, sem grande coerência, ao afirmar que “foi o genocídio nazi um dos principais instrumentos da criação do Estado de Israel”. E, com efeito, a grande oportunidade do movimento sionista surgiu no pós-guerra, quando aos sobreviventes do Holcausto pareciam fechar-se as portas de até então: assimilação nos seus países ou acolhimento nas Américas. Mas continuava a não existir uma nação judaica. E também isso admite Mucznik, sem se dar conta, ao falar-nos na “errância desesperada de mais de cem mil sobreviventes desenraizados cuja única esperança era fugir da Europa e das suas sombras”. Notemos bem as palavras da “investigadora em assuntos judaicos”: os sobreviventes não queriam partir para a Palestina e sim “fugir da Europa”.
E, como continuavam a não ser uma nação, tiveram de ser metidos no molde do Estado israelita para daí sair essa nação. E Mucznik, para fazer a propaganda do Estado, volta a descair-se com a admissão de que foi ele a “cometer a proeza de forjar uma identidade própria forte”.
Dos miríficos inimigos que espreitam esse “Estado de direito exemplar”, Mucznik apenas se refere especificamente ao Irão, um país onde continua a existir legalmente e com representação parlamentar uma significativa comunidade judaica. Classifica-o no entanto como uma espécie de regime nazi, através da referência a Mahmud Amadinedjad como o “pequeno Führer persa”. Devemos portanto esperar que o embaixador iraniano em Lisboa seja em breve visitado e calorosamente cumprimentado por Mucznik como o embaixador nazi o era nos anos 30 pelo antecessor de Mucznik, também dirigente da Comunidade Israelita de Lisboa, Moses Amzalak ...
Enfim, um pequeno esquecimento: ocupada a cultivar o mito do povo eleito, e a meter os pés pelas mãos cada vez que faz baixar esse mito à terra das realidades históricas, Mucznik esquece muito simplesmente a existência do povo palestiniano, como referiu Alan Stoleroff. Regressamos assim à fraudulenta propaganda sobre uma “terra sem povo” (a Palestina). O povo palestiniano, que Mucznik até agora só encarava como detalhe da História, deixa mesmo de ter direito a qualquer nota de rodapé. Deixou de existir na propaganda da “investigadora”.