Devia ser uma reunião para formação de quadros na academia militar Isaac Rabin, em Tivon, recolhendo os ensinamentos da operação "Chumbo derretido" - a recente invasão de Gaza pelo exército israelita. Mas subitamente o responsável do encontro, Danny Samir, começou a notar que aquilo que os soldados e oficiais participantes relatavam, umas vezes com naturalidade, outras com indignação, eram simplesmente crimes de guerra.
Contava-se casos como o de uma mulher cuja casa foi ocupada pelas tropas invasoras e que aí ficou sequestrada com dois filhos pequenos durante vários dias. Depois, foi-lhe dada ordem para se ir embora. Ao sair com as duas crianças, o pequeno grupo foi alvejado pelo atirador especial israelita que se encontrava no telhado. Morreram todos.
Um outro militar contava o caso duma mulher idosa que atravessava uma rua e foi friamente alvejada por um atirador especial. Morreu também.
Não se trata de incidentes isolados. Uma vez que se aprofunda as motivações dos soldados para se comportarem assim, torna-se claro que elas resultam duma educação sistemática nesse sentido.
Alguns referem a propaganda de rabinos extremistas, que têm todas as portas abertas dentro do exército e que aí distribuíram panfletos a explicar tratar-se duma espécie de guerra santa. Num desses panfletos afirma-se que "temos de lutar para escorraçar os infiéis que se atravessam no nosso caminho ao reconquistarmos a Terra Santa".
Mas, para além desta propaganda religiosa, existem ordens dadas indistintamente por toda a hierarquia militar. Um soldado recorda uam dessas ordens: "Sempre que se toma de assalto uma casa, deve-se arrombar a porta e depois disparar para dentro". Comentário do soldado israelita: "A isto, chamo assassínio".
Um outro, que pelo contrário aprovava este tipo de acção, contava: "Lançámos tudo pela janela para libertar espaço. Todo o recheio da casa voou: o frigorífico, os talheres, os móveis. A ordem era deitar tudo fora".
A ideologia justificativa deste comportamento também vinha de cima: "Os nossos superiores disseram-nos que isso estava bem porque todos os que lá tinham ficado [em Gaza] eram terroristas". Comentário dum soldado israelita: "Não entendo: para onde haviam eles de fugir?"
Amos Harel, correspondente do jornal israelita Haaretz, resume as conclusões da reunião caracterizando o comportamento do exército em Gaza como de "matança de civis, vandalismo e regras de intervenção permissivas". Ele cita um outro militar, também chocado com a atitude dos seus camaradas: "Escrever 'Morte aos árabes' nas paredes, pegar em fotografias de família e cuspir nelas, simplesmente porque se pode. Acho que isto é o mais importante: entender como o exército israelita caiu tão baixo em matéria de ética"
Dos relatos, Harel conclui: "A deterioração [do moral] tem sido constante - da primeira Guerra do Líbano para a segunda, da primeira Intifada para a segunda, da 'Operação Escudo Defensivo' para a 'Operação Chumbo Derretido'".
O governo demissionário de Olmert anunciou o fracasso das negociações indirectas com o Hamas, visando trocar o soldado israelita prisioneiro desde 2006 por uma lista apresentada pelo movimento islamista. Segundo Olmert, foi a exorbitância das exigências do Hamas que fez fracassar a negociação. O Hamas estaria a exigir a libertação de várias centenas de prisioneiros condenados a penas múltiplas de prisão perpétua pelo seu papel na luta contra a ocupação.
É normal que o Hamas exija não só a libertação de várias centenas, mas até, se o fizesse, dos mais de 10.000 presos da luta nacional palestiniana detidos em cadeias israelitas. E seria normal que a parte israelita aceitasse essa assimetria das exigências do Hamas, porque ela própria considera muito menos valiosas as vidas palestinianas do que as israelitas. Assim, logo após a captura de Shalit Gaza sofreu um bombardeamento com um saldo de 394 mortes e na recente operação "Chumbo derretido" a proporção entre os mortos israelitas e os palestinianos é de um para cem (1.300 para 13), sem contar os 6.000 feridos e os 100.000 desalojados.
Além disso, o número de prisioneiros palestinianos aumenta constantemente, ao passo que os soldados ocupantes são mais difíceis de capturar. Quando Shalit foi capturado, o exército israelita imediatamente sequestrou metade do governo eleito da Autoridade Palestiniana (oito membros do Hamas nesse governo) e cerca de um terço do parlamento nacional palestiniano (vinte deputados do Hamas). Assim se abastecia de reféns que lhe servissem de moeda de troca ("bargaining chips") e, já agora, sabotava o desagradável veredicto das urnas.
Agora que as negociações fracassaram, o mesmo exército logo lançou uma nova campanha de detenções de quadros do Hamas na Margem Ocidental do Jordão (dez deputados do Hamas, quatro membros do Conselho Nacional, um ex-vice-primeiro-ministro e um professor universitário). Essa campanha não deveria, como confessadamente as autoridades israelitas pretenderam com ela, reduzir as exigências do Hamas e sim aumentá-las. Agora que há mais presos palestinianos, a lista só tem motivos para crescer.
Os intermediários egípcios na negociação, insuspeitos de qualquer simpatia pelo Hamas, testemunharam entretanto que a lista de libertações se manteve inalterada desde o início das negociações e que foi o contínuo regateio israelita a inviabilizar um acordo a certa altura tido como iminente. Aliás, um dos principais conselheiros da delegação israelita ao Cairo, o chefe do serviço secreto Shin Beth, Yuval Diskin, era assumidamente um opositor de qualquer acordo com o Hamas.
Para além da nova vaga de detenções na Cisjordânia, o governo israelita lançou uma fuga de informação sobre um debate interno que estaria a realizar no sentido de agravar ainda mais o regime prisional dos prisioneiros palestinianos. Considerando que Shalit não tem direito a visitas da sua família, afirmam os proponentes do tal agravamento, os presos palestinianos também deveriam deixar de tê-las.
Acontece que também aqui existe uma assimetria completa entre a potência ocupante e o povo que sofre a ocupação. Aquela tem um aparato de segurança quase impenetrável nas suas cadeias, ao passo que as organizações palestinianas não podem dar a conhecer o local onde conservam os seus prisioneiros, sob pena de sofrerem imediatamente um golpe de mão do exército israelita, sem quaisquer escrúpulos em derramar abundantemente o sangue de combatentes e não-combatentes palestinianos e mesmo do prisioneiro israelita.
Acresce que vários prisioneiros palestinianos são conservados numa prisão secreta no deserto do Negev, sem nunca saberem onde estão e sem nunca serem visitados pelas suas famílias, sofrendo nesse sentido uma privação de contacto com a sua família bem pior que a de Shalit. E, finalmente, é preciso sublinhar que é moeda corrente a tortura de prisioneiros palestinianos, em contraste com o bom tratamento que tem recebido Shalit, de acordo com os princípios humanitários, as Convenções de Genebra e os interesses da luta nacional palestiniana.