O activista palestiniano Omar Barghouti escreveu o texto seguinte em comentário a um artigo ontem publicado no diário Haaretz, pelo jornalista Gideon Levy, um ícone do jornalismo israelita mais acerrimamente defensor dos direitos humanos. Levy afirmava aí que, apesar dos crimes de guerra por si cometidos, o exército israelita não pode ser comparado com as tropas nazis. Sobre essa categórica negativa se pronuncia, em seguida, Barghouti. O texto original não tinha título.
Omar Barghouti
Ao recusar a comparação [entre sionismo e nazismo] no seu artigo, é claro que Gideon Levy faz exactamente isso - ele está a comparar. Ele cita também vários exemplos, no final do artigo, que levam muitos analistas a comparar.
Se é certo que concordo inteiramente com ele em que a ocupação israelita, mesmo acrescida da sua forma especial de apartheid e dos seus crimes contra a humanidade, não pode ser identificada com o nazismo, não é menos certo que acho inaceitável o estauto sagrado que o Holocausto adquiriu, fora de qualquer quadro racional de pensamente e de investigação científica. Nenhum genocídio deve ser "intocável" ou categoricamente incomparável. Só deus tem, na cabeça dos crentes, essas propriedades divinas, não-humanas. Nada no mundo está ou deveria estar fora do alcance da razão. Nem sequer o Holocausto.
O genocídio contra os africanos no tráfico de escravos dominado pelos europeus causou sem dúvida mais mortes e mais sofrimento durante um período mais longo. O extermínio em massa das populações indígenas da América do Norte e da Austrália não pode senão ser comparada com o Holocausto na sua inspiração ideológica e no seu impacte. Os crimes de Israel, todavia, não podem ainda medir-se, em qualidade ou quantidade, com os cometidos pelos nazis. Mas, tal como consta da alusão de Levy, não se pode deixar de ver que certas práticas, políticas, e posições ideológicas são aparentadas com práticas e modos de pensamento nazis, especialmente nos anos 1930 (pré-Holocausto) e nos territórios europeus ocupados pela Alemanha.
Quando soldados israelitas na primeira Intifada entrraram quatro palestinianos vivos e os deixaram morrem, ese foi um crime de crueldade propriamente nazi.
Quando soldados israelitas na segunda Intifada adoptaram no norte da Margem Ocidental a política de arrebanhar os palestinianos de sexo masculino, tanto os rapazes a partir de certa idade como os mais velhos, e lhes escreveram na testa os seus números de identificação, também isso se parecia demasiado com as práticas nazis para ser simplesmente ignorado. Tommy Lapid, um político israelita racista e de direita, foi quem mais ruidosamente protestou no Knesset contra esta política. A sua avó e outros membros da sua família contavam-se entre os milhões exterminados no Holocausto.
Quando soldados israelitas gravaram, com punhais do exército, a Estrela de David nos braços de adolescentes palestinianos durante a invasão da Margem Ocidental em 2002, ninguém podia ignorar a semelhança do acto com as práticas nazis.
Mais recentemente, as práticas israelitas nazistóides em massa, os slogans, as T-shirts, etc., durante a guerra de agressão contra Gaza, especialmente devidas à doutrinação fascista levada a cabo por rabinos fundamentalistas sobre os soldados antes ou durante a ofensiva, evocaram certamente práticas nazis nas cabeças de muitos sobreviventes do Holocausto e de pessoas de consciência.
Iguais? Não, de modo algum. Comparáveis? Certamente
O editorial de hoje do "Público", assinado por José Manuel Fernandes, pode resumir-se a duas palavras de ordem: Boicotem a conferência da ONU contra o racismo! E: bombardeiem o Irão!
Para justificar a primeira palavra de ordem, Fernandes afirma que a conferência é um "espectáculo grotesco". Cita o episódio, na verdade grotesco, de um médico palestiniano que, depois de ter sido preso, torturado e julgado na Líbia, foi libertado por via duma negociação internacional e agora, na conferência, foi impedido de falar pela presidente líbia da conferência.
Escapou no entanto ao perspicaz Fernandes que esse episódio, tão revelador, revela na verdade o inverso do que ele pretendeu demonstrar: os palestinianos continuam a ser vítimas silenciadas, não só pelo sionismo e pelas potências ocidentais, mas também pelos regimes árabes entretanto promovidos de "terroristas" a "bons alunos" da comunidade internacional.
Ora, o sr. Kahdaffi é precisamente um desses grotescos ditadores, que monta a sua tenda e o seu harém em qualquer capital europeia para onde é convidado e finalmente ainda recebe o prémio de poder designar a presidente duma conferência da ONU sobre racismo. Quem lá pôs a presidência líbia? Foram os palestinianos? Ou foi o sr. Ban-Ki Moon, homem de confiança do imperialismo?
Fernandes aplaude, naturalmente, os países que recusaram estar presentes na conferência, quase todos por carregarem com o embaraço de terem exterminado as suas populações indígenas e não suportarem enfrentar um areópago em que os crimes passados e presentes facilmente lhes seriam lançados à cara. Dos que lá foram (23 Estados-membros da União Europeia), diz-nos Fernandes muito docemente que foram "fazer figura de palhaço (Portugal incluído)", e que, do mal o menos, "lá se levantaram quando o presidente iraniano ultrapassou os limites do decoro".
E que limites de decoro foram estes? Negar o Holocausto, como Amhadinedjad realmente fez em ocasiões anteriores, para gáudio e deliciamento da propaganda imperialista? Nada disso. Amhadinedjad disse, desta vez quatro coisas citadas por Fernandes que nada tinham a ver com essas, negacionistas, "barbaridades do costume". Vejamos quais foram.
Primeira afirmação: que "Israel é o mais cruel regime racista". Verdade: desde que foi destruído o apartheid sul-africano não há outro que se lhe compare. Sairiam da sala os representantes dos 23 países se tivesse sido o ex-presidente Carter a dizê-lo? Mas não é isso que ele tem dito e escrito? Ou foi o abandono da sala uma manifestação de racismo contra o que pode ser dito por um dignitário norte-americano mas está vedado a um persa?
Segunda: que Israel existe "a pretexto do sofrimento judeu" às mãos do nazismo. Note-se que Amhadinedjad não nega aqui o dito sofrimento. O que ele diz é que tem sido usado como pretexto para criar um Estado com características particulares, que discrimina os árabes e muçulmanos como o Irão fundamentalista e obscurantista não o faz aos judeus.
Terceira: que foi por via da "agressão militar" que europeus e americanos "deixaram sem terra uma nação inteira". Também é verdade.
Quarta, enfim: que a colonização sionista criou "um governo totalmente racista na Palestina ocupada". Não é isto que temos diante dos nossos olhos?
A figura de palhaços que fizeram os 23 governos europeus, Portugal incluído, foi portanto a de terem saído da sala por lá serem ditas verdades. E não teriam faltado no discurso de um fundamentalista religioso inverdades, para se levantarem contra elas. Mas decidiram sair por causa de evidências duras como punhos, e que molestam a sua política de apoio ao terror sionista.
De tudo isto conclui Fernandes que o governo da extrema-direita actualmente no poder em Israel "tudo fará para que o Irão não tenha a bomba nuclear, mesmo que tenha de o fazer sozinho" e, sob a forma de pergunta retórica, que não é "tolerável que tenha de o fazer sozinho". Ah, que saudades do unilateralismozinho bushiano, sr. Fernandes! Saudades suas e saudades da embaixada de Israel, que lhe paga as viagenzinhas pelo Médio Oriente! Vamos a ver se a Administração Obama continua a precisar tanto destes ferrabrazes de mata-e-esfola, belicistas nucleares e genocidas de aviário como precisou a Administração Bush.