Acabo de sair de uma reunião com o ministério dos Negócios Estrangeiros. Encontrei-me com a embaixadora adjuntapara a OCDE e outro membro da sua equipa. Fui acompanhado por uma companheira do Comité de Solidariedade com a Palestina.
Começámos por agradecer a decisão de princípio de Portugal de apoiar o relatório Goldstone. Também agradecemos por terem sido um dos países europeus que se opuseram ao reforço do acordo entre a UE e Israel, que levou finalmente a uma interrupção temporária do processo. Em seguida, explicámos a nossa posição no que respeita à admissão de Israel na OCDE. Argumentámos sobre os valores da OCDE e sobre como Israel os ignora. Apelámos à coerência da posição portuguesa.
Elas responderam que o processo de admissão é meramente técnico e que a política não está aí envolvida. Desafiámo-las em dois pontos. Primeiro, que o documento genérico da OCDE para a admissão de países é muito claro: embora o processo de admissão seja técnico, a OCDE estipula várias oportunidades ao longo do processo para considerações políticas. Portanto, não é verdade que a política esteja fora de questão; aceitar Israel é uma posição política. Segundo, evocámos a grande quantidade de condições que Israel não consegue respeitar, incluindo a falta de fornecimento de todos os dados económicos.
A embaixadora adjunta concordou que Israel tinha falhado no fornecimento de dados económicos transparentes e noutras questões. Disse, no entanto, que 1 - Os países da OCDE estão favoráveis à aceitação de Israel; a UE vai coordenar as suas posições e será um sim a Israel. 2 - Uma vez que Israel for incluída, a OCDE forçará Israel a cumprir todos os regulamentos e Israel já deu garantias de que o faria. 3 - A inclusão seria melhor do que deixar Israel de fora.
Respondemos que 1 - Temos 60 anos de história que provam que Israel despreza a autoridade da lei, as resoluções da ONU, etc. Israel manterá um veto na OCDE e não há indícios de que as coisas mudarão. Isto será uma recompensa para os atropelos à lei de Israel. 2 - A inclusão provou ser errada neste caso e dei o exemplo da África do Sul.
Desafiámo-la em seguida sobre os dados económicos; dissemos que Israel forneceu dados que excluem 4 milhões de pessoas que vivem sob o seu controlo, que isto seria o mesmo que se Portugal fornecesse à OCDE dados que incluíssem Lisboa e excluíssem as regiões mais pobres. Se Israel tivesse mostrado os dados reais, não teria sido elegível para membro. O processo técnico lidou com Israel como se este não fosse um poder ocupante.
A representante de Portugal não teve resposta e repetiu apenas aquilo que já tinha dito, que tinha inteira confiança no processo técnico, mesmo se foi incapaz de mostrar que ele era credível.
Por fim, eu disse que se Portugal e a UE votarem a favor de aceitar Israel como membro, isso destruirá a sua posição enquanto actor credível na região. Acabei com uma nota positiva, dizendo que embora tivessem decidido aceitar Israel, ainda há a opção de reavaliar a posição de Portugal. Ela então perguntou-me quais tinham sido as posições dos outros países. Respondemos que a Irlanda, a Noruega e a Suíça tinham mostrado simpatia pelos nossos argumentos e ela disse que isso não era a mensagem que ela tinha recebido desses países. O representante belga também me tinha perguntado pela posição dos outros países. Penso que os governos não estão a comunicar as suas reservas, partindo do princípio de que existe um consenso e isto é um problema.
Esther Mucznick já nos habituou a quase tudo. Mas a sua crónica dada à estampa no "Público" de 6 de Maio excede os limites. Receosa de que o filme "Lebanon", de Samuel Maoz, possa prestar-se a uma leitura crítica sobre os crimes de guerra sionistas, Mucznick elogia o instinto de sobrevivência: "Sem esse instinto, não há guerra possível". Aí está, portanto, um instinto que faz muita falta. E prossegue: "Se quiseres proteger os teus soldados, não podes ser moral. Se escolheres actuar moralmente, a maioria dos teus soldados morre". Esta é, com efeito, uma filosofia enraizada, que justifica todos os crimes de guerra. Para "protegeres os teus soldados", recorres à "prática de vizinhos", que consiste em sequestrares aleatoriamente civis palestinianos para serem expostos, como escudos humanos dos soldados ocupantes, sempre que estes entenderem que podem estar perante uma possível linha de fogo. Dirá Mucznick, como disseram durante muito tempo - até um dia - os tribunais israelitas: é um comportamento justificado, porque protege os soldados. Mas as Convenções de Genebra baseiam-se na ideia de que também há obrigações com os combatentes do inimigo - e mais ainda com os não-combatentes. Tudo o resto se baseia na ideia racista de que as vidas dos outros valem menos do que as nossas. Com a sua filosofia, Mucznick só tem de propor que o Estado de Israel - agora em vias de ser acolhido na OCDE pelas democracias ocidentais - rompa formalmente com as Convenções de Genebra, ficando assim dispensado de responder a relatórios como o de Goldstone. Claro que aí ainda ficaria por explicar em que é que o bombardeamento aéreo de cidades densamente povoadas é tão necessário para proteger os soldados israelitas Mucznick conclui do seu arrazoado que "a coragem de Maoz foi a de encarar 'a besta' que há em cada ser humano". É isso também que diz um nazi fictício, representativo de tantos nazis reais do seu tempo - Max Auer, o protagonista de "As Benevolentes", que se desculpa dos seus crimes dizendo que toda a gente seria capaz de cometê-los, porque em toda a gente há uma "besta". A "investigadora" conclui que a condenação dos crimes de guerra é algo "de quem vê a guerra de longe, de muito longe". Tem razão: nós condenamos os crimes de guerra e hoje, felizmente, vemos a guerra de longe. Ela justifica-os estando tão longe como nós.
(carta enviada à directora do Público e publicada no jornal em 12.5.10)