Israel : o ano em que as máscaras caíram
Artigo de Gideon LEVY publicado no Haaretz
O ano da verdade
O ano que terminará esta noite por um beijo foi o ano em que acabou a mascarada israelita, o ano em que os disfarces foram arrancados e a verdade se mostrou. Em que o verdadeiro rosto se revelou. Foi o ano em que finalmente saímos do armário – acabaram-se as palavras melosas e os discursos vazios sobre a justiça e a igualdade; acabaram-se os embelezamentos e as palavras superficiais a propósito da paz e de dois Estados. Este ano, a verdade foi ouvida em público, com um eco forte e claro de uma ponta a outra do país, inquietante e deprimente.
Já ninguém fala de paz; este ano, até já pusemos entre aspas o “processo de paz”, para podermos troçar dele como ele merece. O que fica da paz este ano, é o enviado especial dos EUA, George Mitchell. E nas sondagens de opinião nada resta da visão de dois Estados do primeiro-ministro ou da maioria. Este ano, o governo israelita disse NÃO, até a um congelamento temporário da construção de colonatos, e os israelitas calaram-se.
Depois deste ano de verdade, ninguém poderá pretender seriamente que Israel procura a paz com os palestinianos ou com os sírios, que falaram de paz mas que foram deixados sem resposta. Todas as desculpas perderam o seu valor – o terrorismo palestiniano parou e fica pelo menos um meio parceiro, que é mais moderado que qualquer outro. No entanto, permanecemos nas nossas posições. E a verdade é estrondosa: os israelitas não querem mesmo a paz, preferem-lhe a terra. Os funcionamentos internos da sociedade israelita também foram desmascarados. A aparência de uma sociedade democrática e igualitária foi de repente substituída por um retrato autêntico, terrivelmente nacionalista e racista. Rabinos e suas mulheres, presidentes de câmaras e deputados cantaram todos juntos num coro discordante: não aos árabes e não aos estrangeiros. Durante os anos que precederam este ano de verdade, ainda era hábito excomungar os racistas.
Neste ano de verdade, declarámos sem vergonha que Meir Kahane tinha razão. Praticamente a metade dos israelitas se opõe ao aluguer de apartamentos a árabes; mais de metade deles é favorável ao juramento de obediência ao Estado; esposas de rabinos associam-se aos seus maridos para implorar as castas filhas de Israel a não frequentarem os árabes; um membro do Knesset declara que aos que deixarem entrar clandestinamente “infiltrados” - como se chamou este ano os trabalhadores migrantes e os refugiados de guerra – dever-se-ia dar um tiro nos miolos; e um dos seus colegas atribui aos russos a acusação dos hábitos israelitas de bebedeira.
Ao mesmo tempo, propusemos uma lei apelando à expulsão de estrangeiros críticos perante Israel, no caso de eles virem de visita; um director de escola de Jaffa não autoriza os seus alunos a falar árabe; um militante contra a ocupação foi preso por ter participado numa manifestação de protesto em bicicleta; e um defensor dos direitos dos beduínos foi parar à prisão por um tempo ainda mais longo pelo delito de ter uma garagem ilegal.
Esta é dia após dia a abundância de relatos sobre a vida do país durante a última parte deste ano maldito. Tais relatos foram-nos quase quotidianamente atirados à cara. O estrangeiro expande as doenças e a criminalidade e os estudantes árabes querem deserdar-nos pelo preço do aluguer de duas assoalhadas. Também lançámos campanhas de intimidação e semeámos o medo daquele que é outro e diferente, que não teriam envergonhado os regimes mais vergonhosos do passado. Fizemos manifestações escandalosas contra os refugiados e os árabes, com os encorajamentos de uma parte da instituição e o silêncio dos outros, dos quais uma tonalidade pode ser ouvida – uma tonalidade de arrogância e de nacionalismo.
Também foi o ano de Avigdor Liebermann do Yisrael Beiteinu, que já não é um lobo vestido de cordeiro mas um bruto dos arredores que não liga às consequências. Uma tentativa de resolver a crise com a Turquia e bum! uma pancada na cabeça. Em vez dos eternos discursos do presidente Shimon Peres sobre a paz, o ministro dos Negócios Estrangeiros, este ano, esbofeteou repetidamente em nosso nome o mundo inteiro. Não é apenas Kahane que tinha razão, mas Liberman também. Ele diz a verdade, a verdade sobre Israel.
Não há nada como o sol para desinfectar, por isso acabou por ser um bom ano. É possível que este dilúvio de duvidosos sentimentos nacionalistas emergindo das profundezas da alma, latente desde há anos, faça mexer esta nação entorpecida. Talvez, depois deste ano, a minoria que pensa de outra maneira abra enfim os olhos. Talvez, enquanto as chamas nos rodeiam a todos, compreendamos que esta não é a sociedade onde temos vontade de viver. E talvez o mundo compreenda o que está em jogo.
Hoje, à meia-noite, quando o champanhe francês correr como água e quando beijarmos os nossos entes queridos, talvez compreenderemos que o próximo ano será decisivo. Será o último ano em que poderemos ainda salvar alguma coisa. Se acontecer um milagre e se isso acontecer de facto, estaremos gratos ao ano que termina, o ano da verdade para Israel.
Fonte: http://www.haaretz.com/print-edition/opinion/the-year-of-truth-1.334416#send-friend-popup
Traduzido da versão francesa de CAPJPO-EuroPalestine, 1.1.2011