Na edição de 2011, este prestigiado festival declara receber um apoio à programação por parte da embaixada israelita. Sabemos que os apoios que as embaixadas de Israel têm dispensado a eventos culturais no estrangeiro são mínimos. Reduzem-se, a maior parte das vezes, ao pagamento de uma simples viagem de avião. Mas esses apoios simbólicos são suficientes para dar direito à exibição de um logotipo da embaixada e tornaram-se num dos métodos de propaganda utilizados pelo Estado de Israel para o branqueamento dos seus crimes contra a humanidade. Israel quer assim dar de si a imagem de um país democrático e tolerante, amante da cultura e da liberdade.
Mas nós todos sabemos que não existe liberdade sob o colonialismo. Ninguém é livre quando vive sob ocupação militar, confinado a bantustões cercados por muros e checkpoints, quando assiste diariamente a demolições de casas, a destruição de olivais, a confiscação de terras e a bombardeamentos.
A campanha de boicote, desinvestimento e sanções (BDS), em curso desde 2005 é semelhante à que contribuiu para o fim do apartheid sul-africano, isolando-o internacionalmente, e é a única forma pacífica de combater com êxito o lento genocídio do povo palestiniano.
Outro festival de cinema de referência, o Queer de Lisboa, cometeu, no ano passado, o mesmo erro de aceitar um apoio institucional da embaixada de Israel. Vários movimentos de solidariedade organizaram em consequência um protesto público à porta do festival. E o laureado realizador canadiano John Greyson exigiu que fossem retirados do festival dois filmes seus e que a sua explicação para esse gesto fosse lida no início da sessão onde deveria ter passado o primeiro dos seus filmes.
Gostaríamos de ver o Indie Lisboa seguir os exemplos dos festivais de cinema de Edimburgo e de Locarno que, respondendo ao apelo das organizações, dos intelectuais e artistas palestinianos de todo o mundo (inclusive israelitas), devolveram às embaixadas em causa os apoios recebidos. Qualquer aceitação de patrocínios vindos do governo israelita só pode ser vista como um apoio de facto a um regime de apartheid. Pedimos portanto que a direcção do festival reflicta sobre este tema e colocamo-nos à sua disposição para prestar quaisquer esclarecimentos que entenda necessários.
Com os melhores cumprimentos,
As organizações: Colectivo Mumia Abu-Jamal Comité de Solidariedade com a Palestina Pagan – Plataforma Anti-guerra Anti-NATO Panteras Rosa SOS Racismo
*Haidar Eid é um militante palestiniano, membro da campanha pelo Boicote, Desinvestimento e Sanções, professor universitário de literatura inglesa na universidade de Gaza.
Declarar a independência de um bantustão
A “euforia induzida”, que caracteriza entre os principais meios de comunicação as discussões a respeito da futura declaração de um Estado palestiniano independente em Setembro, ignora a dureza das realidades no terreno e os avisos de comentadores críticos. Descrever uma tal declaração como uma “brecha” e como um “desafio” ao defunto “processo de paz” e ao governo de direita de Israel serve apenas para ocultar a permanente negação por parte de Israel dos direitos dos palestinianos, ao mesmo tempo que reforça a ratificação implícita pela comunidade internacional de uma situação de apartheid no Médio Oriente.
O movimento pelo reconhecimento é conduzido por Salam Fayad, o primeiro-ministro designado da Autoridade Palestiniana (AP) sedeada em Ramallah. Ele baseia-se na decisão tomada nos anos 1970 pela Organização de Libertação da Palestina (OLP) de adoptar o programa mais ágil de uma “solução de dois Estados”. Esse programa defende que a questão palestiniana, que está no cerne do conflito israelo-árabe, pode ser resolvida pelo estabelecimento de um “Estado independente” na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, com Jerusalém oriental como capital. Segundo esse programa, refugiados palestinianos voltariam para o Estado da « Palestina », mas não para as suas casas em Israel, que se auto-define como o “Estado dos judeus”. Do mesmo modo, a “independência” não toma em conta esta questão, assim como não toma em consideração os apelos de 1,2 milhão de palestinianos de nacionalidade israelita, tratados como cidadãos de terceira categoria, para transformar a luta num movimento anti-apartheid.
Tudo isto é suposto entrar em vigor depois das forças israelitas se retirarem da Cisjordânia e de Gaza. Ora, não se tratará apenas de uma reafectação de forças, como pudemos ver durante o período de Oslo? Os promotores desta estratégia pretendem no entanto que a independência garante que Israel tratará como um único povo os palestinianos de Gaza e da Cisjordânia e que a questão palestiniana pode ser resolvida segundo o direito internacional, satisfazendo assim os direitos políticos e nacionais básicos do povo palestiniano.
Deixemos de lado o facto de que Israel mantém até 573 barragens e pontos de controlo permanentes através da Cisjordânia, sem contar 69 pontos de controlo “móveis” adicionais; e é possível que vocês também prefiram ignorar o facto de que os colonatos “puramente judeus” existentes anexaram mais de 54% da Cisjordânia.
Quando da conferência de Madrid em 1991, Yitzhak Shamir, então primeiro-ministro de um governo de “falcões”, não tinha sequer aceitado o “direito” palestiniano a uma autonomia administrativa. Com a chegada do governo de “pombas” Meretz/trabalhista, conduzido por Yitzhak Rabin e Shimon Peres, os dirigentes da OLP travaram na Noruega negociações de bastidores. Ao assinar os Acordos de Oslo, Israel encontrava-se livre do pesado fardo de administrar Gaza e as sete cidades sobrepovoadas da Cisjordânia. A primeira intifada terminou com uma decisão oficial – e secreta – da OLP, sem ter atingido os seus objectivos nacionais de transição, nomeadamente “liberdade e independência”, e sem o acordo do povo que a OLP era suposta representar.
A mesma ideia de “independência” foi primeiro rejeitada pela OLP, porque ela não respondia aos “direitos legítimos mínimos” dos palestinianos, e porque ela é a antítese da luta palestiniana pela libertação. O que é proposto no lugar desses direitos é um Estado cuja existência é apenas nominal. Por outras palavras, os palestinianos são obrigados a aceitar uma plena autonomia sobre uma fracção apenas da sua terra e não podem nunca pensar em termos de soberania, de controlo de fronteiras, de reservas hídricas e, mais importante que tudo, de retorno dos refugiados.
Esses foram os Acordos de Oslo e essa é também a “declaração de independência” planeada. Não é de surpreender, portanto, que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu tenha declarado que “não poderia dar o seu acordo a um Estado palestiniano através de negociações”.
Esta declaração ainda menos promete respeitar o plano de partilha das Nações Unidas de 1947, que só garantia aos palestinianos 47% da Palestina histórica, embora eles representassem mais dos dois terços da população. Uma vez declarado, o futuro Estado palestiniano “independente” ocupará menos de 20% da Palestina histórica. Ao criar um bantustão e ao chamá-lo “Estado viável”, Israel vai livrar-se do peso de 3,5 milhões de palestinianos. A AP governará o número mais pequeno de palestinianos no maior número de fragmentos de território – fragmentos que podemos chamar de “Estado da Palestina”. Esse “Estado” será reconhecido por dezenas de países – o que dará grande inveja aos infames chefes tribais bantus da África do Sul!
Podemos igualmente supor que a “independência” tão comentada e celebrada só reforçará o papel desempenhado em Oslo pela Autoridade palestiniana, ou seja, o de tomar medidas de polícia e de manutenção da ordem destinadas a desarmar os grupos de resistência palestiniana. Tais foram as primeiras exigências impostas aos palestinianos em Oslo em 1993, em Camp David em 2000, em Annapolis em 2007 e em Washington no ano passado.
Ao mesmo tempo, no âmbito das negociações e das exigências, nenhum compromisso ou obrigação são impostos a Israel. Tal como os Acordos de Oslo significavam o fim da resistência popular e não violenta da primeira intifada, esta declaração de independência tem um objectivo semelhante, isto é, de pôr um termo ao apoio internacional crescente a favor da causa palestiniana, que se tem afirmado desde o ataque de Israel contra Gaza no inverno de 2008-2009 e o seu ataque contra a Flotilha da Liberdade em Maio passado.
E esta declaração não garante tão pouco aos palestinianos um mínimo de protecção e de segurança contra as futuras agressões e atrocidades israelitas. A invasão e o cerco de Gaza foram uma consequência de Oslo. Antes da assinatura dos Acordos de Oslo, nunca Israel tinha utilizado plenamente o seu arsenal de F-16, de bombas de fósforo e de armas de fragmentação em Gaza e na Cisjordânia. Mais de 1200 palestinianos foram mortos de 1987 a 1993 durante a primeira intifada. Israel ultrapassou esse número durante as três semanas da sua invasão em 2009; conseguiu matar brutalmente mais de 1400 pessoas apenas na Faixa de Gaza. Isto, sem contabilizar as vítimas do cerco estabelecido por Israel desde 2006, que se caracterizou por bloqueios e ataques israelitas repetidos, antes e depois da invasão de Gaza.
No fim de contas, o que esta suposta “declaração de independência” oferece ao povo palestiniano não é mais que uma miragem, uma “pátria independente” que não é outra coisa que um bantustão travestido. Mesmo se for reconhecida por tantos países amigos, ela é impotente para conceder aos palestinianos a liberdade e a emancipação. Um debate crítico – quer dizer, oposto ao que é desviado e demagógico – exige o exame atento das distorções da história por falsas representações ideológicas. Onde nos devemos implicar, é numa visão histórica e humana das questões palestiniana e judaica, uma visão que nunca negue os seus direitos a um povo, que garanta uma completa igualdade e que abula o apartheid – em vez de reconhecer um novo bantustão, 17 anos após a queda do apartheid na África do Sul.