Agradecemos a sua resposta e o facto de ter aberto connosco uma via de diálogo que confirma o percurso e as características do Teatro de Almada. Queremos, no entanto, clarificar os seguintes pontos:
- a campanha de boicote cultural lançada através do apelo de artistas palestinianos em 2004 é de cariz institucional e rege-se por directrizes que visam uma aplicação consistente e com base em princípios universais. Portanto, não é dirigida a indivíduos por eles mesmos, mas sim a instituições culturais cúmplices da política de apartheid do Estado de Israel, tanto pelos seus laços legais ou pelo seu silêncio, ou por serem embaixadores culturais de Israel.
- Como referimos, em 2005 o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel lançou uma campanha de marketing - Brand Israel - que tem por objectivo enviar embaixadores culturais à volta do mundo para branquear as políticas de ocupação e colonização do Estado de Israel. É de salientar que uma das condições exigidas para o financiamento de artistas israelitas é que estes se tornem "embaixadores" representantes do Estado. Aliás, este aspeto é evidente no caso da Kamea, quer pela sua denominação de "embaixadores de Beersheva", quer pelo que ficou claro na carta que partilhou connosco, em que eles descrevem Israel como uma democracia, apesar da maior parte da população que Israel governa não ter o direito de voto ou mesmo direitos básicos.
- Assim sendo, achamos cínica a resposta da Kamea e ingénuo tê-la partilhado connosco como sendo um argumento fidedigno a afirmação de que eles não estão envolvidos na política e são "independentes", quando eles se associam abertamente ao governo e aceitam o papel de embaixadores de uma cidade onde se vive diariamente crimes de guerra, sem tomarem qualquer posição de oposição a este racismo como parte deste papel (critico?) de "embaixadores". A Kamea fala na sua carta da "condição humana", mas não assume nenhuma posição contra a ocupação; ela é composta por bailarinos de várias nacionalidades, mas curiosamente nenhum palestiniano. A arte, como sabe, não existe num vácuo e está intimamente ligada à realidade. Acima de tudo, a arte usada politicamente torna-se propaganda ao serviço de um Estado opressor.
- Relativamente à comparação da realidade em Israel com a da ditadura de Salazar, e a viabilidade da aplicação de um boicote cultural aos dois, queremos sublinhar que a diferença está no facto de o boicote cultural contra Israel ter sido lançado como pedido de solidariedade pelo povo oprimido, neste caso os palestinianos, sendo a nossa resposta em Portugal uma mensagem clara a Israel que não pode haver "business as usual" com um Estado opressor e uma forma de solidariedade para com a luta do povo palestiniano pela liberdade, justiça e igualdade. Não houve no tempo da ditadura um apelo similar ou unificado vindo de Portugal para o mundo. A analogia mais correta será com o movimento anti-apartheid sul-africano que incluiu também um boicote cultural, mobilizando nos anos 80 figuras da cultura pelo mundo fora, que na altura se recusaram a atuar no apartheid sul-africano.
- A visão que nos transmite de um mundo artístico ignorante à realidade e passivo face à opressão, contrasta com o enorme apoio que o boicote cultural a Israel tem vindo a receber a nível mundial, com nomes como Roger Waters, Ken Loach, Mike Leigh, Lauryn Hill, Mark Rylance, Emma Thompson, Alice Walker,Naomi Klein, Elvis Costello, Brian Eno, Jean Luc Godard, Mira Nair, entre muitos outros. Um Festival de Almada que fecha os olhos ao apelo de solidariedade de um povo oprimido, escolhendo associar-se ao Estado opressor, torna-se cúmplice desta política.
Lamentamos que o Festival de Almada tenha decidido seguir em frente com a sua associação à embaixada de um país conhecido pelos seus constantes crimes de guerra e, como vimos nesta troca de correspondência, com uma coordenação próxima entre as duas partes que não deixa de ser chocante para um festival conhecido como progressista. Apelamos a que reconsidere a vossa posição e continuamos abertos a uma reunião.