António Guterres proíbe relatórios que critiquem Israel
Publicamos aqui a carta de demissão de Rima Khalaf, secretária executiva da ESCWA (Comissão Económica e Social para a Ásia ocidental), em resposta ao pedido formal de António Guterres, secretário-geral da ONU, para que a ESCWA retirasse a publicação de um relatório que acusa Israel de ser um Estado de apartheid.
Caro Senhor Secretário Geral,
Considerei com atenção a sua mensagem transmitida pelo Chefe de gabinete e asseguro-lhe que em nenhum momento pus em questão o seu direito de retirar a publicação do relatório do nosso site internet ou o facto de que todos nós que trabalhamos para o secretariado estejamos submetidos à autoridade do secretário-geral. Assim como não tenho nenhuma dúvida com respeito ao seu empenho perante os direitos humanos em geral, e a sua posição firme relativa aos direitos do povo palestiniano. Também compreendo as suas preocupações, em particular nestes tempos difíceis que lhe deixam pouca escolha.
Não sou insensível aos ataques viciosos e às ameaças que pesam sobre as Nações Unidas e sobre si pessoalmente por parte de importantes Estados-membros como resposta à publicação do relatório da ESCWA intitulado "As práticas de Israel para com os palestinianos e a questão do apartheid". Não me parece surpreendente que tais Estados-membros, actualmente com governos que se preocupam pouco com as normas e os valores internacionais relativos aos direitos humanos, recorram à intimidação quando lhes parece difícil defender as suas políticas e práticas ilícitas. É normal que os criminosos pressionem e ataquem aqueles que defendem as suas vítimas. Eu não posso submeter-me a uma tal pressão.
Não é em virtude do meu estatuto de oficial internacional, mas em virtude do meu estatuto de ser humano honesto, que acredito, como o senhor, nos valores e princípios universais que sempre foram as linhas de conduta do bem na história humana, e sobre os quais uma organização como a nossa, as Nações Unidas, é fundada. Como o senhor, considero que a discriminação contra qualquer pessoa por motivos da sua religião, da cor da sua pele, do seu sexo ou da sua origem étnica é inaceitável, e que tais discriminações não podem tornar-se aceitáveis por via dos cálculos do oportunismo ou do poder político. Considero ainda que os povos não só deveriam ter o direito de dizer a verdade ao poder, mas que eles têm o dever de o fazer.
No espaço de dois meses, o senhor pediu-me que retirasse dois relatórios produzidos pela ESCWA, não por causa de erros que tivessem sido cometidos nesses relatórios, e provavelmente não porque o senhor estivesse em desacordo com o seu conteúdo, mais por causa da pressão política exercida pelos Estados-membros que violam gravemente o direito dos povos da região.
O senhor viu que os povos dessa região vivem um período de sofrimento nunca visto na história moderna, e que o número considerável de catástrofes hoje resulta do fluxo de injustiças que foram ignoradas, escondidas ou abertamente aprovadas por governos poderosos dentro e fora da região. Esses mesmos governos são os que estão a pressioná-lo para fazer calar a voz da verdade e o apelo à justiça apresentados nesses relatórios.
Considerando o que precede, eu não posso senão manter as conclusões do relatório da ESCAW, segundo as quais o Estado de Israel estabeleceu um regime de apartheid que procura o domínio de um grupo racial sobre outro. As provas trazidas neste relatório redigido por peritos de renome são numerosas. Todos os que atacaram esse relatório não disseram uma palavra sobre o seu conteúdo. Considero como um dever meu, em vez de eliminar as provas, divulgar o facto legalmente e moralmente indefensável de que no século XXI ainda existe um Estado de apartheid. Ao dizer isto, não estou a afirmar nenhuma superioridade moral ou visão superior. A minha posição é influenciada por uma vida de experiências onde vi as consequências desastrosas para a paz quando se bloqueia as queixas dos povos da nossa região.
Percebo que tenho pouca escolha. Não posso agora retirar mais outro dossier das Nações Unidas bem documentado e resultado de investigações aprofundadas sobre graves violações dos direitos humanos, embora saiba que instruções claras do secretário-geral devam ser aplicadas rapidamente. É um dilema que só posso resolver pela minha demissão para permitir que outra pessoa faça aquilo que eu não posso fazer em boa consciência. Sei que já só tenho duas semanas no meu posto; a minha demissão não se destina portanto a exercer qualquer pressão política. É simplesmente porque penso que é meu dever para com os povos que servimos, para com as Nações Unidas e para comigo mesma, não retirar um testemunho honesto sobre um crime em curso que está na origem de tanto sofrimento humano. Por consequência, venho entregar-lhe a minha demissão das Nações Unidas.
Respeitosamente,
Rima Khalaf
Traduzido pelo CSP da versão francesa publicada em 21 mars 2017 em http://www.france-palestine.org/Lettre-de-demission-de-Rima-Khalaf-secretaire-executive-de-l-ESCWA-commission