O direito dos palestinianos a resistir por todos os meios
Ronnie Kasrils, sul-africano branco descendente de judeus do Báltico, combateu no braço armado do ANC a partir de 1961, foi ministro da Defesa da África do Sul (1994-99), ministro da Água e da Floresta (1999-2004) e ministro dos Serviços de Inteligência (2004-2008). Saiu do governo e tornou-se muito crítico da orientação actual do ANC, mas mantém-se activo em comités de solidariedade com a Palestina.
O texto que segue, da autoria de Ronnie Kasrils, foi traduzido do inglês pelo Comité de Solidariedade com a Palestina.
Nelson Mandela declarou várias vezes que “a Palestina é a maior questão moral do nosso tempo”. Após termos derrubado o regime de apartheid em 1994, ele continuou a dizer que “nós, sul-africanos, não podemos considerar-nos livres enquanto o povo palestiniano não for livre”.
Nós, entre milhões de sul-africanos, demarcámo-nos colectivamente do horrendo ataque de Israel contra a população de Gaza durante os 51 dias de pesadelo da “Operação Fronteira Protectora” e da permanente crueldade em curso na Cisjordânia. Quando os ataques terminaram, ficámos chocados para lá do imaginável quando vimos uma comunidade de 1,8 milhão de habitantes em ruínas; Khozaa, Shujaiyya, Beit Hanoun, com famílias e bairros inteiros desaparecidos.
Segundo as Nações Unidas, 2.131 palestinianos foram mortos durante a ofensiva israelita. Desses, 501 eram crianças, 70% abaixo dos 12 anos.
O ministro da Saúde de Gaza registou 10.918 pessoas feridas, incluindo 3.312 crianças e 2.120 mulheres. Segundo as Nações Unidas, 244 escolas foram bombardeadas e uma delas utilizada como base militar pelos soldados israelitas. A organização de direitos humanos Al Mezan documentou pelo menos 10.920 casas atingidas ou destruídas, das quais 2.853 foram completamente arrasadas. Oito hospitais - seis deles ficando fora de serviço -, 46 ONGs, 50 barcos de pesca, 161 mesquitas e 244 veículos foram igualmente atingidos.
80% das famílias de Gaza não têm como alimentar-se e são dependentes de ajuda. Quintas agrícolas junto à fronteira foram definidas como zona de protecção que Israel estende unilateralmente fazendo fogo directamente sobre os agricultores. Quando se priva uma população dos seus meios de vida e de movimento, quando os feridos não têm acesso aos cuidados médicos, quando os exilados são forçados repetidamente a refugiar-se em tendas de lona, e quando tudo isto acontece debaixo de ataques ferozes por terra, mar e ar, com a comunidade internacional a olhar calmamente enquanto se arma Israel - o que se deve lhe deve chamar?
“O crime dos crimes"
Pela primeira relativamente a Israel e às suas acções em Gaza, o Tribunal Russell sobre a Palestina [TRP], do qual tenho orgulho em ser um jurado, examinou o crime de genocídio. Como explica o professor John Dugard, um outro jurista do Tribunal: “O crime de genocídio é o crime dos crimes. Devemos encará-lo com muito cuidado. No entanto, a Operação Fronteira Protectora foi de uma tal gravidade que o Tribunal Russell acredita ser necessário considerar se esse crime foi cometido».
As características desse crime envolvem matar, causar danos corporais ou infligir condições de vida calculadas para causar destruição física na totalidade ou em parte de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Contrariamente ao crime contra a humanidade, ele tem de ser cometido com a intenção de destruir o grupo, na totalidade ou em parte. O que nós constatámos nesta sessão do Tribunal, é que estamos no limite de um apartheid genocida, com incitação ao genocídio, um perigo real, articulado a vários níveis da sociedade israelita, tanto nos meios sociais como tradicionais, desde adeptos de futebol, agentes da polícia, comentadores nos meios de comunicação, chefes religiosos, legisladores e ministros do governo.
O povo da África do Sul, exceptuando uma minoria de sionistas e seus adeptos, está horrorizado. Conhecemos o apartheid. Nós, lutadores pela liberdade que visitámos os territórios palestinianos ocupados, declararam unanimemente: “Recordamo-nos do apartheid, mas o que vemos aqui é muito pior”. O sistema do apartheid na África do Sul precisava de força de trabalho barata dos negros para fazer funcionar a economia e por isso o Estado deixava-os viver - ou melhor, sobreviver. Mas ainda havia enormes semelhanças com o apartheid israelita.
Como em Israel, as pessoas “não-brancas” ou “não-europeias” (termos do apartheid) eram privadas de direitos iguais e de liberdade de movimento; viam as suas casas nas cidades brancas serem demolidas e eram transferidas para guetos sem electricidade; enfrentavam check-points, buscas humilhantes, assédio constante e exigências rigorosas para obter autorizações de trabalho. Quem não podia exibir uma autorização de trabalho e era encontrado numa cidade branca, ia directamente para a prisão. Qualquer resistência era tratada com a repressão policial, encarceramento, tortura e por vezes massacres como o mais infame deles, em Sharpeville em 1960, onde 69 manifestantes pacíficos foram abatidos a tiro. No entanto, nenhuma township negra nem nenhum bantustão foi alguma vez bombardeado do céu ou atacado por tanques e artilharia.
Durante aqueles maus velhos tempos, o povo da África do Sul aprendeu as lições da luta. A primeira de todas era nunca se render à repressão e continuar a resistir. Submeter-se significava efectivamente validar e exonerar o sistema do opressor. Ficar intimidado ou chocado pela repressão punitiva até à submissão significava dar a oportunidade ao opressor de afirmar que os oprimidos estavam conformados com a sua sorte. Eles iriam então gabar-se de que os seus “negros” estavam melhor e mais felizes do que os da África independente.
Assim, nós, os sul-africanos que levámos a cabo a luta, compreendemos muito bem o direito de um povo a resistir à tirania e à ocupação. Até o direito de resistir com armas é reconhecido na lei internacional. Na nossa luta contra o apartheid sempre rejeitámos com desprezo as acusações de «terrorismo» proferidas contra nós pelos apaniguados de Reagan e Thatcher e fomos inspirados pela comunidade internacional que entendia e apoiava a nossa justa luta.
Dever moral
Com um legado destes, beneficiámos da solidariedade internacional e do movimento de boicote, desinvestimento e sanções (BDS) e compreendemos o nosso dever moral. Não podemos tolerar uma crítica que questione o direito do povo palestiniano a resistir por todos os meios que julgue necessários. Rejeitamos a tentativa de equiparar a violência dos dois lados, como se pudesse haver paridade entre o terrorismo do Estado de Israel e a resistência palestiniana. Rejeitamos o absurdo do “terrorismo” da resistência com o sinistro motivo dos “túneis escavados”. Os palestinianos têm o direito de fazê-los, como nós por vezes fizemos durante a nossa luta armada e como os judeus do gueto de Varsóvia fizeram na sua acção corajosa, quando do levantamento de 1943 contra os nazis. Compreendemos facilmente que foram precisamente esses túneis nas fronteiras de Gaza que detiveram as forças terrestres israelitas de avançar para infligir uma ainda maior carnificina.
As manifestações de solidariedade em vilas e cidades da África do Sul (200.000 na Cidade do Cabo) levaram a que o nosso governo do ANC e todos os governos por todo o lado deixassem o jogo de apelar aos dois lados para pararem com a violência como uma pré-condição para o cessar-fogo e as negociações. Vamos com certeza continuar até pressionar o governo a implementar a BDS contra o apartheid de Israel - assim como o ANC pediu que fizessem a todos os governos durante a nossa luta -, e que não diga que isso é tarefa da sociedade civil, como desculpa para nada fazer. São os governos que aplicam sanções e asseguram que elas sejam implementadas pelos sectores público e privado.
As conclusões do TRP serviram para informar e mobilizar governos, instituições, sociedade civil e movimentos de solidariedade para implementarem as tácticas e políticas de Boicote, Desinvestimento e Sanções. Mais significativa foi a investigação do TRP sobre a prática por Israel de limpeza étnica e actualmente daquilo que o Tribunal Russell articulou como assassinato, perseguição e extermínio.
O bárbaro e violento ataque contra Gaza de Julho-Agosto 2014 será o centro da nossa campanha pela responsabilização, não apenas de Israel mas de outros países. A Israel e aos seus cúmplices não deve ser permitido exterminarem um povo impunemente. Temos de impedir que o crime de genocídio aconteça. O que vimos em Gaza em 2014 pode acontecer e acontecerá de novo se o mundo permanecer silencioso. O mundo tem de estar com o povo de Gaza, da Cisjordânia e com os refugiados palestinianos. Isto é para o bem da paz e da justiça, para todos os que vivem em toda a terra de Israel/Palestina.
Original publicado em:
http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2014/09/gaza-crime-crimes-201492664043551756.html