Presença de Israel na Eurovisão 2025 - a banalização do genocídio
Carta enviada à RTP pelo Comité de Solidariedade com a Palestina
Exmo. Sr. Presidente do Conselho de Administração da RTP e membro do Conselho de Administração da EBU, Nicolau Santos;
Exma. Sra. Chefe de Delegação da comitiva portuguesa à Eurovisão e membro do Grupo de Referência do Festival Eurovisão da Canção, Carla Bugalho;
Exmo. Sr. Diretor de programas da RTP e Diretor criativo do Festival da Canção, Gonçalo Madaíl;
Exma. Sra. Chefe de Imprensa da Delegação portuguesa à Eurovisão, Maria Dias Ferreira,
A edição de 2024 do Festival Eurovisão da Canção foi a mais caótica, politizada e desagradável da história da competição. A razão é conhecida de todos - a participação da emissora pública israelita (KAN), em pleno genocídio em Gaza, e a cumplicidade da União Europeia de Radiodifusão (EBU).
A semifinal em que Israel irá competir, este ano, está marcada para o dia 15 de maio - dia da Nakba - dia em que se assinala a expulsão e limpeza étnica da Palestina em 1948. Caso Israel suba ao palco nesse dia, a Eurovisão irá escrever o capítulo mais abjeto da sua história.
Os crimes de Israel
Israel está a ser investigado pelo crime de genocídio contra mais de dois milhões de pessoas em Gaza e, tanto o Tribunal Internacional de Justiça como as Nações Unidas, já ordenaram a Israel que se retirasse dos Territórios Ocupados da Palestina e da Síria. O Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e o antigo Ministro da defesa, Yoav Gallant, têm ambos sobre si um mandado de captura do Tribunal Penal Internacional. A intenção declarada de Israel é completar a limpeza étnica de Gaza, expulsando a população palestiniana ou destruindo a sua capacidade de sobrevivência. Isto após 77 anos de ocupação militar e de opressão do povo palestiniano.
Cumplicidade e violação dos estatutos da EBU
A KAN viola sistematicamente os estatutos e os valores fundamentais que a EBU garante defender. Desde difundir vídeos de crianças a cantar "Vamos aniquilar toda a gente [em Gaza]" à promoção da endoutrinação militar de crianças israelitas; de programas “humorísticos” onde se lamenta “não estar a acontecer um genocídio” em Gaza a peças jornalísticas onde crimes de guerra são cometídos para deleite dos jornalistas da KAN e para a sua audiência; o rol de conteúdos de desumanização dos palestinianos, de normalização da ocupação e de incitamento ao ódio e ao genocídio é extenso.
Jornalistas e outros colaboradores da KAN estão igualmente comprometidos com o genocídio em curso na Faixa de Gaza: desde jornalistas-soldados a jornalistas que assinam bombas que irão ser lançadas sobre a população de Gaza; de jornalistas que celebram a destruição de aldeias a jornalistas que celebram a morte de jornalistas palestinianos; os exemplos sucedem-se.
A KAN, tal como qualquer outro órgão de comunicação social em Israel, está também sujeita a censura militar prévia das suas peças. De acordo com a investigadora Guy Lurie, apenas entre outubro e dezembro de 2023, 6,500 peças jornalísticas foram total ou parcialmente censuradas pelo estado israelita, não estando naturalmente contabilizada neste número a auto-censura que Israel espera dos jornalistas. Isso perfaz uma média de 72 artigos censurados por dia durante esse período. Em que medida se coaduna isto com os estatutos da EBU?
Violação dos regulamentos da Eurovisão
A delegação israelita pautou a sua presença na edição de 2024 da Eurovisão por episódios de assédio e acosso às restantes delegações e artistas, aos júris do festival ou a jornalistas. Dov Gil-Har, chefe de gabinete da KAN na UE, conhecido por incitar à violência contra palestinianos com cidadania israelita, Itay Bezaleli, estilista, ou Keren Peles, letrista da música israelita do ano passado (e deste ano) não se pouparam a publicações e comentários insultuosos, ofensivos e provocatórios sobre os restantes concorrentes. Joost foi o artista mais visado, tendo a delegação israelita utilizado, inclusive, a morte do seu pai para o atacar. Apesar das várias queixas apresentadas pela delegação neerlandesa, a EBU apenas atuou para expulsar o próprio Joost, e não a delegação que o assediava.
Durante a final, a delegação israelita utilizou símbolos políticos e não se coibiu de fazer declarações políticas, nomeadamente dedicatórias ao exército israelita.
A transmissão do evento feita pela KAN não ficou atrás. Os comentadores da emissora israelita insultaram livremente vários concorrentes. Olly Alexander foi apelidado de antissemita, os irlandeses de bêbados e violentos e, no auge da infâmia, chegaram a vociferar o desígnio de se exterminar os concorrentes da Suíça e da Noruega, Nemo e Gåte (na referência a “filhos de Amalek”). Este incitamento à violência levou a delegação norueguesa a reforçar a sua segurança. Também a Iolanda foi injuriada, tendo os comentadores da KAN aconselhado os espectadores a irem à casa de banho durante a atuação da artista portuguesa.
As regras da Eurovisão estipulam que as emissoras participantes "devem assegurar que nenhum concorrente, delegação ou país seja discriminado e/ou ridicularizado de qualquer forma". A própria EBU confirmou, ainda antes da final, que a emissora israelita tinha violado estas regras e, no entanto, nada fez. Seguros da total impunidade de que gozam, os comentadores da KAN usaram a transmissão da final para, inclusive, escarnecerem das recomendações da EBU.
Um dos comentadores em causa, Akiva Novik, que é também jornalista da KAN, acredita que, em tempos de guerra, o trabalho dos jornalistas é elevar a moral da nação e não o de informar, enquanto outro, Asaf Liberman, é um antigo apresentador da Rádio do Exército.
Politização da Eurovisão
Entre várias outras violações, os comentadores da KAN indicaram quais os artistas em que o público israelita deveria votar (baseando-se nas suas posições sobre a Palestina).
Politização da Eurovisão
Precedente da exclusão da Rússia e da Bielorrússia
Por incorrer nas mesmas práticas e violações, iguais sanções devem ser aplicadas à KAN e igual pressão deve ser exercida sobre a EBU.
A responsabilidade da RTP
Nicolau Santos e Carla Bugalho não podem escusar-se a tomar posição, dado ocuparem cargos relevantes no Conselho de administração da EBU e no Grupo de Referência da Eurovisão, respetivamente. As decisões destes órgãos vinculam-nos especialmente e apelamos, por isso, a que exerçam a sua influência para garantir o fim da cumplicidade da EBU com a opressão e os crimes de Israel.
A própria delegação da RTP presenciou situações de assédio por parte da delegação israelita. Nicolau Santos exigiu esclarecimentos sobre a censura a que a Eurovisão vetou a atuação da artista portuguesa na final e criticou veemente o “sistema anti-apupos” (usado para adicionar aplausos falsos à transmissão televisiva e assim abafar os apupos que se ouviram na Malmo Arena durante e após a actuação da representante israelita): “Para uma organização como a EBU, e para uma organização como a RTP e o serviço público de media da Europa que tem como bandeira o combate às fake news, à desinformação, à manipulação de informação, é inaceitável que seja possível” a “utilização de um método que altera a realidade“
A EBU recusa-se, contudo, a reconhecer a manipulação levada a cabo na transmissão televisiva e continua, no próprio site da Eurovisão, a disponibilizar, exclusivamente, imagens adulteradas da atuação da Iolanda na final.
Finalmente, recordamos que a total impunidade com que Israel comete os seus crimes já colocou em risco a vida de funcionários da RTP, nomeadamente a dos jornalistas Paulo Jerónimo e João Oliveira, que, nas suas próprias palavras, “escaparam por pouco aos tiros dirigidos contra o carro em que seguiam”, quando este foi deliberadamente atingido pelo exército israelita.
Se consideramos grave não ter havido da parte do Governo qualquer condenação deste episódio, a ausência de qualquer comunicado ou tomada de posição da própria RTP é motivo de perplexidade. Quão pouca consideração e solidariedade tem a RTP para com os seus trabalhadores?
O nosso pedido
Instamos a RTP a:
- Exigir à EBU a exclusão imediata da KAN da Eurovisão, em coerência com a posição tomada em relação à Rússia;
- Juntar-se a outras emissoras na apresentação de um requerimento formal à EBU, ao Grupo de Referência e ao Comité de Televisão. A lista de emissoras que podem estar disponíveis a co-assinar tal requerimento consta no Anexo A, em anexo.
- Tomar uma posição pública sobre a exclusão de Israel.
Na ausência de uma resposta positiva por parte da EBU, a RTP deverá demarcar-se da mesma, condenando publicamente a cumplicidade dos dirigentes da EBU e agindo em conformidade. A RTP não pode continuar a alhear-se das responsabilidades que tem neste processo e por isso confiamos que considerará este apelo com a devida atenção .
Comité de Solidariedade com a Palestina