Tunhas, filósofo do óbvio israelita
Um artigo de Carlos Carujo, publicado em 19.07.14
O professor de Filosofia Paulo Tunhas escreve um artigo a defender os bombardeamentos e a invasão da Palestina pelo exército israelita na mais recente plataforma panfletária online da direita portuguesa. É sempre interessante confrontar-nos com as estratégias argumentativas e as falácias de um professor de Filosofia (como também já fui mestre desse ofício, sintam-se à vontade para fazer o mesmo comigo). Claro que este artigo não é um tratado de Filosofia. Mas situa o debate numa forma a-histórica e sem contexto social onde alguns pensam que a Filosofia se deve enclausurar para estar mais confortável. Apesar de não estarmos à vontade na planura deste tipo de argumentação, acamparemos por aí. O escopo deste texto é, portanto, limitado, e segue de perto o tipo de argumentos apresentados.
O artigo começa com a acusação de má-fé de quem se oponha às suas teses (será que essa tal má-fé não explicada é a modalidade central de oposição às teses israelitas?) como forma de introduzir um pseudo-pedido de desculpa pela «elaboração do óbvio» que se encena no texto. Começa portanto com um estratagema que não é brilhante (porque é demasiado óbvio na sua artimanha) mas que é significativo do objetivo: todo o bom senso se deveria render ao óbvio israelita, fora dele apenas a má-fé de uns ou a ingenuidade de outros. Aquele que foi um dos pensadores da evidência, apresenta-se agora como profeta do óbvio.
Sublinhe-se que este óbvio segue fielmente a pauta que a embaixadora de Israel em Lisboa, Tzipora Rimon, apresenta num artigo publicado no jornal Público.O óbvio que enaltece o sistema anti-míssel israelita «capaz de identificar e interceptar os mísseis passíveis de atingir centros populacionais», que cria agora uma mitologia sobre os avisos prévios dos bombardeamentos israelitas e a tese de que o Hamas procura, pelo contrário, atingir áreas residenciais israelitas e de que as vítimas dos bombardeamentos são culpa desta organização que usa civis como escudos humanos. Em algumas partes, de tão óbvios, os argumentos do filósofo e os da embaixadora confundem-se ao ponto de parecer cópia. E o que acr escenta Tunhas não aprofunda nem melhora a argumentação. O óbvio enquadra-se afinal numa máquina de propaganda por repetição.
Depois do apelo ao óbvio, Tunhas prossegue com a ilustração com a qual começa a pensar este conflito. A imagem de partida, claro, escolhe-se como início da narrativa e como arrasamento da história: usam-se os detalhes da execução dos adolescentes raptados de forma a ganhar o lado emotivo do leitor. E, seguindo-se o exemplo do assassinato de um adolescente palestiniano por colonos israelitas, tal não surge para aparentar isenção ou mostrar que há violência dos dois lados mas para tentar provar a diferença: o primeiro-ministro israelita «reagiu prontamente, apelidando o acto de “terrorismo”» enquando os palestinianos teriam regozijado sanguinariamente com a morte dos israelitas(segundo os exemplos apresentados e escolhidos a dedo, dos quais se poderia perguntar se são significativos do pensamento palestiniano sobre o tema).
Só que, poder-se-ia também afirmar, a diferença que é mais significativa no que diz respeito ao desenvolvimento do conflito é que o primeiro-ministro israelita que diz não distinguir terrorismos bombardeia e invade a Palestina sob o pretexto de um dos assassinatos mas não bombardeia nem invade os colonatos extremistas israelitas por causa do outro assassinato.
Momento seguinte: o lançamento de rockets que teria «ao mesmo tempo» subido dramaticamente (aqui o óbvio será tão óbvio que não se acompanha de provas, de números ou fontes indepedentes). Repetindo a embaixadora, Tunhas afirma «claro que o muito efectivo sistema de defesa israelita, a Cúpula de Ferro, tem impedido que o número de mortos seja elevado.» O pressuposto de que o exército israelita bombardeia humanitária acompanha-se pelo pressuposto de que o Hamas lança rockets da forma mais assassina possível. Pressuposto que se procura fazer assentar na carta do Hamas de 1987 (não há documentos ou tomadas de posição mais recentes?) e cuja citação apresentada se encontra profusamente na internet como originária de outra fonte.
Dito isto, Tunhas insurge-se contra a «fauna abundante» que defende que Israel «não deveria reagir» (reagir ao quê?), para imediatamente a seguir afirmar: «no fundo, Israel deveria deixar de existir, deveria desistir da sua própria sobrevivência.» Ou seja, esquecendo já os assassinatos que foram apresentados como motivo, Tunhas, como a embaixadora de Israel, passa magicamente da ideia do bombardeio inofensivo do Hamas ao perigo de sobrevivência de Israel. A sobrevivência de Israel é uma justificação também ela desproporcionada.
O momento óbvio seguinte é o que imputa as vítimas civis exclusivamente ao Hamas:
«Se há vítimas civis, isso deve-se, antes de tudo o mais, ao facto de as armas do Hamas e os seus centros de acção se encontrarem propositadamente localizadas no meio de populações civis, ou em mesquitas, hospitais e escolas, e de o Hamas tentar impedir que as pessoas, antecipadamente avisadas dos ataques por Israel, saiam do sítio onde estão, e onde estão também os responsáveis políticos e militares terroristas que dessas pessoas se servem como protecção.» A repetida tese do «aviso prévio» parece ser agora peça central na argumentação dos defensores do exército israelita. Curiosamente, os adeptos recém-convertidos ao «aviso prévio» de ataques não achariam tão humanitários os ataques com aviso prévio feitos pela ETA. E, para além de seletivo, o argumento é claramente falacioso como prova o artigo que responde no Público à embaixadora.
O aviso prévio é uma sms/telefonema enviada aos milhares com três minutos de antecedência. E se quisermos procurar um óbvio alternativo facilmente equacionaremos que é improvável que um exército empenhado em assassinar os dirigentes do Hamas e eliminar os misseis supostamente escondidos avise os alvos antes de os atingir o que tornaria as ações ineficazes.
Este artigo termina originalmente, com as razões que o autor encontra para a «extravagante vontade de acreditar no Hamas» (claro que só se pode partir do princípio que quem levante dúvidas sobre a atuação do Estado israelita estará do lado do Hamas, organização que se acabou de denegrir e que sobre a extravagante vontade de acreditar piamente no exército israelita nada é dito). São cinco razões:
1- «Para além de uma genérica piedade com o sofrimento humano que só pode merecer simpatia e acordo.» Sobre esta razão prévia nada se diz mas sobre ela impende a suspeita de ingenuidade.
2- «Uma certa vocação para Cavaleiro Andante que vem dos sonhos da infância e que não resiste ao apelo do quadro de um David (imaginário) a lutar, quase indefeso, contra um Golias (não menos imaginário).»
3- «Um secreto gosto romântico pela violência, sobretudo pela violência longínqua e “revolucionária”.»
4- «Uma não excessiva consideração pela democracia. Israel é um país democrático, e a democracia não excita (a não ser nos últimos delírios com a “Primavera Árabe”). Para mais, sendo localizada naquela região, Israel estraga a paisagem. Está culturalmente demasiado próxima de nós para poder geograficamente estar onde está. Ao mesmo tempo, é real. De uma certa maneira, precipita-se em Israel, porque Israel vive numa situação-limite, a questão da possibilidade e da sobrevivência da democracia.»
5- «Anti-semitismo. É certamente uma palavra que se deve usar com muito cuidado, mas também aqui, em certas bandas mentais, a coisa entra em jogo.»
Ou seja, desfilam as personagens estereotipadas na cerimónia de encerramento do artigo: dos ingénuos, aos revolucionários de má-fé aliados aos terroristas sanguinários. Já para não falar anti-semita que é lançado de forma aparentemente inocente mesmo no final do artigo, como acusação que fica a pairar sem destinatário conhecido. Destes fantasmas psicológicos de Tunhas que procuram ocupar todo o espaço de quem não louve o comportamento do Estado israelita pouco resistirá a uma análise. Espremidos os fantasmas caricaturais que só serão óbvios para quem lhes pretende dar vida, a única novidade é também um velho argumento destes debates: a imagem utópia da democracia israelita. Mas, entrando por aqui, perde-se facilmente: porque é tudo menos óbvio que um Estado religioso, que depende da ocupação e da expulsão dos habitantes de um território, que sobrevive assente na exclusão dos palestinianos e na força permanente das armas seja um Estado democrático. E parece-me óbvio que será preciso mais esforço intelectual do que a propaganda do costume para quem queira justificar o que se passa agora mesmo em Gaza.